2025-06-04

DA RELATIVIDADE DAS COISAS: PASSEIOS E BOMBAS

Risoleta C Pinto Pedro

 

Indo eu, indo eu, não a caminho de Viseu, mas a caminho do metro, percorrendo o passeio ao longo do muro da estação de Santa Apolónia pelo lado de fora, sendo que, dado o passeio ser muito estreito, a Câmara colocou uns pilaretes na estrada assim alargando artificialmente a faixa para os peões, pelo que os transeuntes seguem nas duas faixas, uns pela parte mais elevada, o antigo tradicional passeio e outros na estrada em modo de passeio improvisado. Eu levava um menino comigo, seguindo ele pelo passeio junto ao muro, a parte mais segura, e eu ao seu lado pela faixa de estrada “protegida” pelos pilaretes. Cruzaram-se connosco, portanto em sentido contrário, até ao nosso percurso em direcção à porta de Santa Apolónia, cinco adultos. Quem costuma andar com crianças, ou ainda que não costume, por ser uma questão de bom senso, sabe que a estas deve ser sempre reservado o lado interior do passeio, aquele junto à parede, por questões de segurança. Nenhum destes cinco adultos o fez, todos se mantiveram marcialmente junto à parede, forçando a criança a descer o passeio de cada vez que se cruzou com um adulto. Isto contrasta, de um modo chocante, com a sociedade altamente securitária em que há regras sobre regras até à neurose para proteger as pessoas, e mais ainda as crianças, mas onde as mais básicas dessas regras não foram interiorizadas, e por isso têm de ser impostas, por vezes até ao exagero. Assim, é frequente, num transporte público, ninguém ceder o lugar a uma criança pequena, a uma pessoa com um bebé, ou ainda a alguém que pela idade ou condição física se encontre em visível estado de fragilidade. Isto é de toda a importância no mundo que se quer crer civilizado, e, no entanto, deixa de ter qualquer relevância em países em guerra como Israel e Palestina, Ucrânia, Burkina Faso, Somália, Sudão, Iêmen, Mianmar, Nigéria, Síria, lugares onde o que conta a cada dia e a cada minuto é não ser morto. Aí, o protocolo de dar o lugar de dentro do passeio a uma criança, não é considerado. As balas e as bombas não escolhem sítios.

Mas cá, onde vivemos uma aparente paz, o incumprimento ainda é chocante para alguns, ainda que não para aqueles que vão ensimesmados, que vivem o seu solipsismo de eternas crianças, no pior sentido que possamos dar a isto. Aquelas crianças grandes que seguiram linearmente pelo passeio permitindo com toda a naturalidade que um menino de cinco anos tivesse de o descer, isto é, forçando-o a isso, não são adultos conscientes da existência de uma criança em si, são crianças inconscientes da sua permanência, com todos os seus traumas, num adulto que não habita uma cidade, mas que se comporta como numa selva onde tem de se defender de todos os perigos, mesmo que seja uma criança a percorrer o passeio que é dele, só dele. Estas pessoas vivem como numa guerra, num país em paz. É por isso que se revêem em líderes agressivos pelos quais se julgam protegidos, e é por isso que os discursos radicais os empolgam, e a extrema-direita cresce, a par da pedofilia, dos raptos de pessoas ente as quais muitas crianças, para escravidão sexual, rituais satânicos e transplante de órgãos. E seguimos pelos passeios com as nossas vidas ensimesmadas, como se nada se passasse. É por isso que no século XXI países ocupam países para se sentirem mais seguros, grupos terroristas são confundidos com heroicos grupos de libertação, e um país com a nobreza histórica, o sofrimento continuado ao longo de milénios e o sentido de liberdade como Israel, permite que um dirigente de extrema-direita com um discurso inflamado e pretensamente patriótico, em seu nome destrua um povo irmão sem olhar a “quem vai no passeio”, mesmo que seja uma criança. Estudos mostram que mais de 70% da população de Israel está contra esta política assassina. E apesar de Israel ter sofrido um dos mais graves episódios de violência da sua história no dia 7 de Outubro, escandalosamente silenciado nos media oficiais, a maior parte da população quer a paz, quer os seus reféns e quer dois estados. Ao contrário do Hamas, o povo de Israel (não me refiro aos actuais dirigentes) tem uma capacidade infinita para perdoar e recomeçar tudo de novo. Não é justa a assustadora perseguição que por todo o mundo está a ser feita aos judeus, a maioria dos quais não só nada tem a ver com este conflito, como o desaprova totalmente. É um facto a existência de um antissemitismo, que historicamente já tomou formas de eugenia, com raízes pseudo-científicas em países europeus pretensamente civilizados. Foi disso que se alimentou o nazismo. É disso que se alimentam os vários terrorismos árabes que pretendem fazer desaparecer Israel (do rio ao mar…), o único estado que no Médio Oriente preserva, defende e pratica o alto valor da liberdade, pois foi assim que nasceu: de uma revolta de escravos. Em nenhum outro país daquela zona do mundo, mulheres, homossexuais ou pessoas transgénero não só não são perseguidas, como têm os seus direitos garantidos. Isto revela um alto e justo sentido civilizacional. Em nenhum outro país da região existe um sistema tão requintado a nível cultural, científico e educativo. A tolerância vai até ao ponto de aceitar no seu seio e proteger, grupos ortodoxos e ultra-ortodoxos que se dedicam exclusivamente ao estudo, que não trabalham nem combatem, uma espécie de intelectuais eremitas que se devotam a perpetuar a tradição filosófica e espiritual judaica, o que estaria muito bem, se dentro deste grupo não houvesse alguns que são os primeiros a atacar Israel e o seu direito à defesa da terra, da terra onde eles também vivem. É por isso que é intolerável, para os próprios israelitas, que em seu pretenso nome, uma população esteja a ser dizimada pela fome e pelas bombas. Porque têm as coisas claras, sabem que uma coisa é defender-se militarmente, outra dizimar o outro, o civil, e sabem que não é a população da Palestina que é a ameaça, mas um grupo terrorista assassino que se camufla com a sua própria população que diz defender. Começa a haver movimentações árabes, ao mais alto nível, no sentido de desarmar o Hamas e criar condições para que os palestinianos possam viver nas suas casas com a segurança e a dignidade que merecem. Não num resort de luxo, mas num país normal. Mas há vários obstáculos: a começar o próprio Hamas, alguns dirigentes palestinianos, alguns dirigentes árabes, grupos terroristas árabes, o governo israelita de extrema-direita, grupos radicais minoritários israelitas de direita, a loucura de alguns dirigentes mundiais e alguns movimentos políticos radicais pretensamente de esquerda, que usam estes casos humanos como agenda política, por razões que nada têm a ver com as verdadeiras razões. Parecem muitos, mas são uma minoria contra uma imensa população de justos do mundo, contudo têm levado a melhor. Porque as pessoas ainda não são capazes de se unir e fazer frente, nem que seja eleitoralmente ou expressando publicamente a sua opinião, não se deixando enganar por aquilo que é dito na comunicação social e nas redes, porque as pessoas ainda não sabem distinguir o trigo do joio, confundem os valores e vêm o jogo de modo ainda muito primitivo, viciado e bipolar, a branco e preto, índios contra cowboys, porque as pessoas ainda estão demasiado preocupadas em seguir pelo lado mais seguro do passeio, ainda que crianças estejam a ser atropeladas ao lado, digo, bombardeadas, digo, mortas à fome.

O Dr. Gabor Maté, especialista em trauma, explica tudo isto muito bem: a humanidade, sem excepção, é essa a base da epigenética, vem profundamente ferida de uma viagem de milénios, chegou a uma época que pretende civilizada, que aspira a sê-lo, mas não sabe estar nem como fazer, a dor e o medo estão-lhe no sangue, e o pior é que o ignora, e o pior é que o nega, e o pior é que é manipulada todos os dias e a todas as horas por esta imensa dor que muitas vezes nem lhe pertence, mas que transporta desde há gerações, individual e coletivamente. É isto que explica o horror em que vivemos mergulhados, que muitos não querem ver e por isso transformam o palco do mundo num imenso e mentiroso estádio de um campeonato só a dois, onde jogam Israel e Palestina, ou então Rússia e Ucrânia, alternando os duelos ente a primeira e a segunda divisão, consoante os pontos que vão marcando (basta ver o ar de entusiasmo dos comentadores e dos generais nas televisões), esquecendo todas as outras “equipas” (Burkina Faso, Somália, Moçambique, Sudão, Iêmen, Mianmar, Nigéria, Síria) que remetem para a terceira ou quarta divisões, quando estes povos, todos os povos, o que querem é paz. Não satisfeitos, fazemos apostas e vamos criando pequenos ringues de luta ocasionais para nos entretermos, por causa e enquanto assistimos à outra grande luta. Futebol e circo. Porque existe um equívoco no mundo: temos de estar do lado de um dos clubes. Existe ainda outro equívoco no mundo: o de que é possível construir paz sem liberdade. E existe ainda um outro: o de que é possível existir liberdade sem consciência e sem conhecimento de si, aquele de que fala o Dr. Gabor Maté. Enquanto a lucidez não nos estiver nos genes e na prática, não passaremos de marionetas repetindo slogans, manipuladas pelos dois grandes marionetistas escondidos na sombra e vestidos de negro para passarem despercebidos: o medo e a dor. Estaremos ainda tão longe quanto me parece?

Tenho evitado este assunto desencadeador de paixões. É muito fácil cair em julgamentos precipitados antes de obter informação dos vários lados, com que possamos formar o nosso próprio juízo. E o assunto é complexo, não se estuda num dia. Neste caso, há algumas questões que me parecem inquestionáveis: É imprescindível o desarmamento do Hamas, sem o qual, por mais que apregoemos “dois estados” soa a hipocrisia, não há as mínimas condições de estabilidade para a segurança de um e de outro; é irrealista e demagógico exigir de imediato algo para que não há condições, mas é inquestionável a necessidade de convivência destes dois povos cananeus: palestinianos e judeus, os que ali estão há mais tempo, nos seus dois estados. Há quem considere aquele local o útero da história humana, onde terá tido início o sedentarismo e a agricultura. Pelo povo cananeu, de que palestinianos e judeus são originários.

Podemos tentar compreender isto, ou continuar a alimentar o nosso ódio tribal por um ou por outro, que afinal são o mesmo. Babilónios, gregos e egípcios são posteriores. A identidade cultural dos dois povos é antiquíssima e profunda, apesar dos conflitos continuados e antigos, de 10.000 anos, conflitos afinal entre irmãos, como tanto vemos nas famílias, e que num mundo que se pretende menos primitivo terão de ser postos de lado. Não sei como se resolve, mas não é, certamente, com comportamentos cruéis e animalescos como os do Hamas, ou sangrentamente bélicos como os do governo de Israel, que se consegue alguma coisa que não seja mais ódio e mais sofrimento. Não é a aterrorizar populações para que não tenham mais o desejo de ficar, que se resolve o problema da Palestina. Mas talvez os países árabes ali da zona pudessem pôr de lado o egoísmo, e os europeus o preconceito, e juntarem-se para apoiar de modo efectivo a Autoridade Palestiniana com vista ao estabelecimento da segurança, uma vez desarmado o Hamas, e a reconstrução e o restabelecimento das estruturas vitais e das populações deslocadas. Se TODOS, realmente, o quiserem, não tenho dúvidas de que vai acontecer. E precisamos de o visualizar. Não com vídeos esquizofrénicos e idiotas, mas numa realidade construída tijolo a tijolo, para quem lá pretenda viver.

Até que um dia as crianças da Palestina possam seguir tranquilamente pelo lado de dentro dos passeios sem receio de bombas, acompanhadas de adultos protectores, e as israelitas não tenham de fazer dos abrigos a sua segunda casa ou temer que entes animalescos lhes entrem pelas casas a matar, a violar, a torturar, a raptar, e para que não voltem a temer, na Europa, perseguições, ameaças e insultos, o que nos evoca, assustadoramente, outras histórias. Tudo começa antes do início. Junto aos passeios. 

 


risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/

http://www.facebook.com/risoleta.pedro

https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro

 

 

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS