2006-10-04
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


INTERROGAÇÕES SOBRE O CORPO       


- Eleve a bacia; não, não assim. Para a frente, depois para trás. Não, a cabeça fica em baixo, não mexa a cabeça. Também não são as coxas, as coxas ficam; é a bacia, vê? Sente estes ossos aqui? São os ossos da bacia.

Estamos num ginásio de fisioterapia, o homem tem de aprender a localizar a bacia, a sentir a bacia, para não ficar aprisionado nela, para não se afogar nas águas dolorosas. Primeiro é preciso dissociar, separar a bacia dos ombros, separar a cabeça dos pés, aprender que não se dá pontapés com a cabeça nem cabeçadas com os pés, que o estômago digere, não tem de engolir (uma forma de evitar úlceras), que o ombro ampara, não tem de carregar, que a mão serve para estender e acolher, não tem de ficar presa ou aprisionar, que é através do corpo que se aprender a conhecer, separar para depois unir. É o percurso da humanidade que este homem vai ter de re-percorrer numas quantas sessões de fisioterapia. Quando deixar de sentir a bacia, mas souber bem onde ela está, quando ela deixar de lhe doer mas ele souber movimentá-la bem, como nos gestos do amor, tudo estará certo. De quantas sessões necessitará ele? Mesmo assim será sempre um processo muito rápido, comparado com o da humanidade.

Meio-dia de um quente início de Setembro. Rotunda do Areeiro. Uma borboleta circunda a rotunda, mais veloz que os carros. Veloz mas não segura, apesar de formosa. Quase esmaga o corpo num Toyota vermelho, depois num Rover Branco. Desvia-se a tempo, esta borboleta que não conhece as regras de trânsito. O sinal fica vermelho, depois verde, eu sigo, não sei se a borboleta consegue sair deste círculo viciado da rotunda.

Uns minutos depois, umas avenidas mais à frente, Avenida General Roçadas, sinal vermelho. No passeio à minha direita um homem vem andando devagar e lendo o jornal. Pára, tira os óculos, afasta o jornal do rosto, benze-se. Circundo o olhar à procura do demónio local, não encontro, ou não reconheço, afinal vejo, mas não é demónio, trata-se, um pouco mais à direita, um pouco mais acima, da Igreja da Penha de França. O homem benze-se à vista da Igreja. Que significa este gesto? Reconstituo sobre o meu corpo a cruz? Percorro-me do norte ao sul, do oriente ao ocidente? Reconheço um espaço sagrado fora de mim? Reconheço, a partir deste lugar fora de mim o espaço sagrado que eu sou? Recordo, agora que vejo a evocação do sagrado, que o sagrado existe em mim? Que o sagrado existe em todas as latitudes? Convoco sobre mim todas as forças que ao longo dos séculos a igreja propagandeou?

Que o faz afastar-se do papiro, digo, das notícias do mundo, para fazer sobre si um gesto ritual? O que significa, para ele, este gesto? Estou aqui, neste ponto de intersecção entre o norte e o sul, o este e o oeste, o baixo e o cima, o fora e o dentro, a dor e o prazer, o sagrado e o profano, o nascer e o morrer, os que já morreram e os que ainda não nasceram, o pecado e a santidade, o erro e a experiência, o medo e a coragem, o eu e o tu, o eu e o todo, e este é o meu corpo, este é o meu mapa, este é o meu cálice, este é o meu sacrifício, este é o meu vício, este é o meu mito, este é o meu rito, esta é a minha pena, este é o meu poema?

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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