2006-09-20
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


AINDA A CORRECÇÃO LÍNGUÍSTICA       




A propósito deste tema, venho hoje falar de um texto delicioso, embora não muito conhecido, de José Régio, Sonho de uma Véspera de Exame.

Aqui, Régio imagina uma criança na situação que o próprio título resume, e no sonho, mais parecido com um pesadelo, o menino é “atacado” por uns juízes que lhe vêm pedir contas pelos seus erros, inépcias e dificuldades, nomeadamente por ter escrito melro assim: “melrru”. Ao que ele responde:
“[…]

quasi chorando

Senhores juízes!, eu explico: Quando o senhor professor ditou a palavra melro, eu lembrei-me dum casal de rolas que a minha tia Margarida me prometeu se ficasse bem no exame… Lembrei-me que as rolas fazem trru…, trru, e escrevi melro com u e dois rr…
[…]”

Isto remete-nos para a antiquíssima e nunca resolvida questão sobre o carácter aleatório ou não, da linguagem, e também para as potencialidades afectivas das palavras, e fez-me lembrar um belíssimo e complexo livro de António Telmo, onde estuda com brilhante profundidade a relação entre a nossa língua e a cabala, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, e onde ele refere que
“[…]

Para significar o fonema “i” temos, além da forma minúscula e da forma maiúscula da letra, já aludidas, um sinal que os foneticistas expulsaram do alfabeto por se mostrar supérfluo do seu ponto de vista: o “i” grego: Y. Teixeira de Pascoaes escreveu que na palavra “lágryma” o Y exprimia graficamente a queda da própria lágrima e, com este e outros exemplos, insurgia-se contra a tentativa de uniformizar a ortografia. O argumento era demasiado ingénuo no seu sabor poético para poder sugestionar homens práticos que usam o “uniforme” para unir e formar. Defendia o poeta a liberdade de cada um exprimir como sentisse a palavra. Não queria talvez ensinar que não se tratava só de sentimento, mas também de conhecimento.
[…]

Enuncia, assim, a teoria de que:

“ Se o português provém, como pretende a maioria, do latim, e as palavras portuguesas têm, na generalidade, seus étimos nas palavras latinas, tal “genealogia” compõe-se com outra, mais lata, que a deriva de uma língua sobrenatural, pressentida pelos poetas, e, neste livro, tornada menos distante através da “árvore das letras”. Teremos, pois, uma árvore genealógica terrestre e uma árvore genealógica celeste. Do encontro das duas raízes surgiu a língua portuguesa. “

O menino de Régio tem uma intuição natural do facto; ou teria Régio, como João de Deus, conhecimentos da cabala? Sabe-se hoje que a Cartilha Maternal que tanto sucesso teve e continua a ter, está organizada segundo uma lógica cabalística…

Mais à frente, a corroborar estas ideias, Telmo refere vários exemplos, entre os quais:

“Outras letras, todavia, que exprimem ideias mais distantemente dos sons naturais e artificiais, não deixam de animar de sentido inúmeras palavras. Assim o N e o L.

Ninho é o lugar interior da germinação dos ovos.

Certas formas isoladas e definidas na superfície homogénea do mar são designadas por vocábulos em que impera o N: navio, nau, nave, canoa, nadador…

A nuvem, a neve e o nevoeiro ou a neblina sugerem a ideia de um elemento compacto, mais ou menos indiferenciado, uma espécie de germe esparso.

Para o L e de acordo com o seu valor temos, por exemplo, leve, ligeiro, ágil, alado, alto.”

A rematar, Sobre os diálogos de Platão, onde diz Sócrates:

“- A claridade, Protarco, ser-te-á dada pelas letras do alfabeto. Procura-a naquelas que soletraste na infância.”

Nunca ninguém disse nada de tão verdadeiro, digo-o eu, a quem na infância, o alfabeto salvou. Juntando as letras e depois as palavras, voltou a fazê-lo na idade adulta. Assim cheguei aqui. Entre “lágrymas” e canto de “melrrus”.



risoletapedro@netcabo.pt
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