2006-09-13
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


AS TRETAS E O SUBLIME       



      […] A ideia baseia-se na noção tântrica fundamental, encontrada do sufismo ao budismo, de que, se se ingressar num estado inferior ou mesmo num estado profano com consciência clara, esse estado transformar-se-á na sua sabedoria correspondente. Se se entrar na paixão com consciência, encontrar-se-á compaixão. Se se ingressar na ira com consciência, encontrar-se-á clareza. E por aí adiante. […]

Ken Wilber,
Uma Breve História de Tudo



Onde é que eu quero chegar com isto? É sobre uma conversa a propósito de tretas.

Um dia disseram-me:

- Tretas!

Eu ocupava-me de coisas banais, perecíveis. De mortais. Muitas vezes me ocupo desse tipo de coisas. Nem sempre podemos ser grandiosos (uf!, graças a Deus!, que cansaço!) ou entregarmo-nos a projectos nobres, vivermos ideais, cerimónias solenes, subir a pódios, merecer o aplauso, lidar com o sublime. Pois é, às vezes são mesmo as tretas que nos aguardam à saída do Nobel. Às vezes temos de fazer acordos com o banal, assinar pactos com a matéria, fechar os olhos à imperfeição do mundo, dar a cara por aquilo que não nos reflecte mas que foi o possível, gastar os nossos preciosos dias, os nossos minutos galopantes, em questões quotidianas, anónimas, deslizantes, subterrâneas, sólidas, densas, mesquinhas até, no sentido que podemos encontrar no episódio d’Os Lusíadas sobre Inês de Castro, a tal “mísera e mesquinha”.

Cadenciadamente, como as marés, alternamos (Os que têm sorte… Ou os que têm menos sorte do que os que têm mais sorte? Ou os que têm mais sorte do que os que têm sorte? Esperem lá, repitam lá isto outra vez…) entre o sublime e o pequeno. Assim nos salvamos da arrogância do ídolo, do declínio da montanha, da depressão de quem desce do pódio, da solidão do que já foi aplaudido, da queda do herói, da loucura do chefe, dos louros que nos estonteiam. São as palavras que nos iludem, são as tretas que nos salvam. De nós.

A nossa glória consiste em não sucumbirmos à treta da nossa miséria. E transportarmos até ao último momento a miséria de sermos seres que se movem para um fim e não nos deixarmos acabrunhar por isso. Se assim for, talvez aconteça… a transcendência. Talvez no último minuto (talvez antes…) nos nasçam asas. Uma possibilidade de atingirmos a transcendência será aceitarmos a condição de mortais com dignidade e estilo: como deuses.

Afinal, ser Deus não é nada de especial. Ser mortal é que é realmente difícil. Tão difícil que o vejo como uma tarefa para… deuses!

Foi através de nós que Deus se ofereceu a experiência da dor sem a qual não seria nunca completo.

É o pé que não recusando o concreto, o quotidiano e o banal, mas aceitando-o com uma “consciência clara”, ousa saltar sobre o abismo, aquele que pode transformar-se em asa e aprender a voar. O outro continuará a arrastar a corrente… da nobreza, da glória, do sublime. Da escravidão.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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