2006-01-11
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
      “áceitáumbôlinhú?”

Primeiro, não percebi. Até pensei que não fosse para mim. Então, repetiu, mesmo atrás de mim, muito perto do meu ouvido. Estava numa loja chinesa. Como tinha visto uma chinesa verdadeira a comer, com a boca tão cheia que nem tinha conseguido responder à minha pergunta, o que é normal acontecer, agora com a diferença acrescida da boca cheia, achei estranho que, de repente, a chinesa tivesse começado a falar comigo em chinês com um sotaque brasileiro.

Então virei-me, e era a empregada brasileira, que, afinal, também estava a comer bolos, e também tinha a boca muito cheia. Afinal, o que o eloquente gesto do saco dos bolos quase em cima do meu nariz me permitiu compreender, foi:

- Aceita um bolinho?

Com aquele delicioso sotaque que todos conhecemos.

Ora, eu andava a ver camisolas, precisava de fazer perguntas, não me apetecia ficar também com a boca cheia, por isso aceitei o sotaque e a simpatia do oferecimento, recusei o bolo, pelo que não sei se o bolo também era delicioso. Para além do mais, pareceu-me excessivo: chinesa, empregada e cliente, todas a comerem bolos, não dava muito bom aspecto.

E pelo meio das camisolas percebi por que razão não percebera à primeira o que ela dissera:


    1º: Só tinha visto uma chinesa à entrada, logo, estava à espera de ouvir falar chinês.

    2ª Ouvir falar pretensamente “chinês” com sotaque brasileiro, confundiu as impressões e as conexões do meu cérebro.

    3º: Não esperava encontrar duas pessoas com a boca cheia no meio de pijamas, soutiens, saias e camisolas.

No entanto, reconheço que começa a ser frequente a presença de empregadas brasileiras em lojas de chineses. São uma espécie de intérpretes, mais do que vendedoras, e uma ponte cultural entre os portugueses e os chineses. Fazem-no muito bem, mesmo com a boca cheia de bolos.

Um português ou uma portuguesa teria mais dificuldade, por mais de uma razão, a saber:

    1º: não comeria na loja, mesmo para imitar o patrão chinês, porque já temos alguns tiques europeus impeditivos.

    2ª: apesar de dominar a língua dos clientes, falaria com os clientes com demasiada distância e formalismo, ainda com mais dificuldades de comunicação que os próprios chineses, pelo que não teria utilidade nenhuma.

Uma brasileira está perfeita: é simpática, reduz o falso embate cultural Portugal/China, e é tão osmótica que até consegue comer bolos enquanto atente os clientes. Como a patroa. Coisa que nem um empregado de tasca conseguiria fazer. Para além do mais, fá-lo com elegância, naturalidade e gentileza. Sem a subserviência do “é servida?”, mas com a açucarada dignidade do “áceitáumbôlinhú”?

Não há dúvida. Estávamos a precisar cá dos brasileiros. Daqui por umas décadas seremos melhores do que éramos.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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