2005-09-07
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


A ROSA ESQUERDA    



"Escreve com a mão esquerda / para abrires a rosa esquerda do desejo,"
António Ramos Rosa

* É o título de um livro de Ramos Rosa.
Inspirei-me nele para um exercício literário com alguns alunos de um curso de escrita criativa. Um dos problemas deles era, justamente, pensavam eles, com a criatividade. Cada um tinha, pelo menos, um polícia à porta da criatividade. E tudo o que saía era analisado, avaliado, criticado, censurado. É impossível escrever assim. Não se escreve nada. É impossível fazer seja o que for, assim. Porque, às tantas, já não sai nada. Para criar é necessária uma enorme dose de confiança na nossa capacidade de criação. Para criar é necessário acreditarmos que somos criadores. E que somos criadores de tudo, desde a arte, à nossa vida. Que pode ser uma arte. Para criarmos, temos de nos conceder o direito de errarmos, de não sermos sempre brilhantes, de aceitarmos que o que fazemos pode não ser sempre a melhor coisa do mundo. Mas que somos capazes de nos responsabilizarmos por isso. E precisamos de acreditar que temos em nós a capacidade de fazermos, todos os dias, ou só às vezes, a melhor coisa do mundo. Para se conseguir isto, primeiro temos de despedir o polícia em nós. Não é preciso ser ao pontapé; pode ser com gentileza e até agradecendo-lhe a boa vontade. Mas é preciso explicar-lhe que já não precisamos mais dele, que agora NÓS asseguramos a responsabilidade por nós próprios e por aquilo que fazemos. Isso não exclui uma revisão do que se fez. Mas é depois. Primeiro, é preciso confiar no criador em nós. Convocando as musas, como fez Camões (eu desconfio que falava com os seus botões à beira do Tejo) ou escrevendo com a mão esquerda, como aconselhei, a certa altura, aos meus alunos. Com a mão esquerda (ou a direita, no caso dos esquerdinos) conseguiram despistar o polícia, trocaram-lhe as voltas, o coitado estava à espera no sítio errado. O sítio do costume. E a coisa aconteceu. Fizemos outras coisas, claro, usámos outros truques para desprogramar e descondicionar, o condicionamento é sempre o grande problema, na criação como na vida. Mas o que eu queria, essencialmente, era que eles provassem a si mesmos que não precisavam do polícia, que ele só atrapalha. Na criação como no trânsito. A criação é uma espécie de trânsito onde os sinais vermelhos só atrapalham, porque é tão fluido que não precisa. Há um cruzamento perto de minha casa onde às vezes se lembram de pôr um polícia a desorientar o trânsito. Quando a coisa se mostra complicada ainda antes de lá chegar, mesmo que o movimento do trânsito não o justifique, eu já sei que ele está lá.
Os meus alunos da escrita criativa escreveram com "a mão esquerda" e abriram "a rosa esquerda do desejo". De criar. Ramos Rosa dixit e a coisa aconteceu.
Os poetas sabem.




risoletapedro@netcabo.pt
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