2005-06-01
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Kusturica no Largo da Graça

Foi um escândalo. Comecei a ouvi-los dentro do supermercado, uma música sonoríssima que se sobrepunha a tudo, às vozes, aos ruídos normais do sítio. Começou por ser ignorado, nas cidades aprende-se a ignorar o inesperado... até um certo ponto. Aqui, a coisa estava, nitidamente, a passar de um certo ponto. Os rostos abriram-se, interrogativos. Não era a algaraviada da Liga de Cegos João de Deus, não estávamos em eleições, logo, não poderia ser nenhum carro de qualquer partido, que seria?! Que se tratava de um altifalante, não havia dúvidas. Dificilmente consegui resistir à forte sensação de estar a entrar num filme de leste.

O cenário, cá fora, era assim:

Em pleno Largo da Graça, um acordeão, um violino e um órgão eléctrico com a potência de uma orquestra sinfónica no seu máximo. Uma coisa absolutamente escandalosa que devia ouvir-se a largos quilómetros de distância. Pareceram-me romenos, ou búlgaros, a música soava a ser daqueles lados, mas também podiam ser jugoslavos saídos de um filme de Kusturica.

Olhei, à volta, os rostos entre o inicialmente escandalizado e o progressivamente, embora relutantemente, agradado. As pessoas falavam aos berros para se ouvirem, mas não pareciam zangadas, pelo contrário: havia sorrisos, pareciam outras, e a Graça não era a Graça, mas uma praça qualquer de uma cidadezinha de leste. Era como se todos os dias pudessem ouvir e tivessem ouvido aquela música, que não lhes era estranha, e isso parecia ser bom, libertador. Uma espécie de repouso de si mesmos ou de reencontro com um eu desconhecido. As pessoas riam, algumas dançavam, e, coisa estranha, olhavam-se!

Nem os lojistas se queixavam. Vinham às portas e sorriam.

Como era de se esperar, mas ninguém esperava, no melhor da festa apareceram dois polícias (devem ter ouvido a música na esquadra, lá em baixo em Santa Apolónia, apesar da distância, a sonoridade era bem capaz de galgar até ao rio) para os mandar embora. Aconteceu, então, o insólito:

As pessoas protestavam, contestavam, argumentavam, dizendo que se em vez de músicos se tratasse de ladrões, os polícias não tinham aparecido tão depressa e tê-los-iam deixado em paz, mas como estavam a ganhar a vida e a divertir as pessoas, já era proibido. Algumas tornaram-se agressivas, chamaram aos polícias nomes desagradáveis. No fundo, estavam tristíssimas por terem que reentrar no mundo normal. E viviam, antecipadamente, uma nostalgia do que poderiam ser os seus dias.



risoletapedro@netcabo.pt
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