2005-05-04
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


"FERNANDO PESSOA - UTOPIA EM GENTE"

Este texto constituiu uma comunicação que, a convite da Associação Fernando Pessoa, apresentei na quinta-feira, dia 21 de Abril, no Auditório da Fnac do Chiado. O tema era "A Utopia em Fernando Pessoa". Pela relativa extensão, peço desculpa aos leitores.

No dicionário Houaiss define-se "utopia", na sua primeira acepção, como: "Qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-económicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da colectividade". Por mim, esta deveria ser a definição de democracia.

No segundo sentido aparece como "projecto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável." Esta deveria ser a definição de fantasia, porque parte do princípio que a generosidade é impraticável. Ora, a palavra latina "generositas" significa "nobreza", "boa raça", e por sua vez, vem de "genero", que significa "gerar", "criar". Assim, é uma fantasia acreditar que criar nobreza ou uma boa raça, seja uma coisa impraticável. E não me refiro a manipulações genéticas, mas a processos alquímicos.

A entrada do dicionário inclui, ainda, a concepção marxista de utopia, o socialismo utópico.

Mas nenhuma destas se aplica à utopia que encontramos em Pessoa, porque nesta utopia de Pessoa não há leis morais, não é uma quimera (quimera é uma figura da mitologia grega, com uma parte de leão, outra de cabra, outra de serpente) e não assenta sobre teorias políticas ou económicas. Nem filosóficas. Nem religiosas.

Será necessário irmos até à etimologia, ao grego; aí compreenderemos que a palavra é formada por:

"ou"- advérbio de negação

"topos"- lugar

Logo, um não lugar.

É uma utopia mítica:

"[...] São ilhas afastadas/ São terras sem ter lugar"

Talvez nenhum tenha levado tão à letra a ideia de utopia como F Pessoa, ele, que sem sair daqui, a procurou em todo lado, pois é um ser tão amplo que tudo lhe tem sido atribuído, umas vezes justa, outras injustamente, mas o que acontece é que ele abrigou, como ninguém, as ideias aparentemente mais contraditórias. O paradoxo. No fundo, a verdade.

A utopia dele é, realmente, um sem lugar, nunca ninguém prezou tanto e tão indefinidamente definiu a utopia

Cristão, pagão, filósofo, esoterista, mago, cienticista, ingénuo, escandaloso, ele próprio é um não lugar:

"... Eu não sou nada na matéria...". Diz, a respeito dos heterónimos.

Utopia não é, em F Pessoa, um conceito moral, mas um conceito ético, porque amplo, porque livre, porque intemporal. É uma utopia que não passa pelo desejo. Não é racionalista nem idealista, é totalmente irracional, um tiro no escuro, ou melhor, no nevoeiro. A utopia de Pessoa é a utopia nacional. A nossa utopia é a do nevoeiro, e essa é a prova dos nove de que se trata de uma verdadeira utopia, porque nevoeiro é coisa que praticamente não temos. Uma utopia num cenário assim é mais imediatamente compreensível num país do norte, menos solar. Mas cada um é como é, e nós (Fernando Pessoa compreendeu-o) somos assim. Identificamo-nos muito com aquilo que não temos. E isso pode são ser um defeito, mas feitio. Foi o que nos permitiu a aproximação aos povos, ao diferente, e nos permitiu ser generosos, regeneradores, gerar, criar novas e boas raças, miscigenar. O nosso defeito é feitio, o nosso feitio é uma qualidade.

Talvez, por na realidade não estarmos mergulhados em nevoeiro, nos seja mais fácil desvendar a outros o nevoeiro em que estão mergulhados. É sempre mais fácil ver no outro o que não conseguimos ver em nós mesmos e que receamos. Como diz Yung, o nosso inconsciente são os outros, e como tal, é mostrando ao mundo o nevoeiro que não nos é atávico, que encontraremos o sol que já existe em nós.

A originalidade é que nesta utopia a via é a do sacrifício e da intuição. Isso é visível na Mensagem.

A sua originalidade vem de ser uma utopia de um passado, talvez porque o futuro não é mais do que um passado ainda por acontecer, talvez porque o passado é o primeiro não topos, ou não lugar, e o futuro, o segundo. Neste paradoxal caminho foi antecedido por Camões e Vieira, assim criando com eles, na impossibilidade de construir a utopia num espaço, uma utopia do tempo. Total, onde não há tempo. E embora refira os heróis, é unicamente como símbolos; não se circunscreve esta utopia às elites, fala em raça, Nação, Povo, Portugal. Esta nobreza também não tem lugar numa classe, amplia a noção de nobreza a todo um povo. É generoso, gera nobreza. A utopia realizar-se-á quando este povo, pelo caminho do nevoeiro, também a criar, a levar ao mundo. É uma utopia generosa e ampla.

Evolui do ter para o ser de uma forma iniciática: nasceu na terra, nos pinhais, passou, com as naus, pelos caminhos da água, dissipou-se, com Sebastião, no nevoeiro, o húmido ar que não tendo criámos e em que ainda nos encontramos, falta-lhe ainda o fogo dos corações:

" Mas a chama, que a vida em nós criou, / [...] A mão do vento pode erguê-la ainda."

A mão do vento a soprar novamente o fogo. É o vento a dissipar o nevoeiro, húmido elemento não propício à chama. Assim criou Pessoa um sistema, se é que disso se pode falar, em que o simbólico se sobrepõe ao real: "O mito é o nada que é tudo".

E estabelece a prevalência da intuição que "escorre", em vez do plano, que assenta, soube achar a eficaz forma de construção da realidade:

"Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade, [...]"

A intuição e o paradoxo, sempre: a espada de dois gumes e abriu o caminho, por entre o nevoeiro fantasma, para a utopia.

E muito mais:

"Onde o Rei mora esperando. / Mas, se vamos despertando, / Cala a voz, e há só o mar." Nestes versos há que dar atenção a um importante aspecto de semântica, porque se em outros autores o "despertar" corresponde ao estado de alerta, mas não ao nível físico, este despertar deve ser entendido como uma forma de adormecimento, logo, precisamente o contrário: despertar para os sentidos, adormecer para o espírito. E vice-versa.

Quer ele dizer que o caminho até esta não terra não é o caminho do lado esquerdo do cérebro, não é o dos sentidos, nem o da razão, mas outro.

O caminho até esta não-terra não se faz como se aprenderia numa Alemanha racionalista ou mesmo numa França das Luzes, nem foi por acaso que aqui ganhou amplidão, e ele deu voz, a uma tal utopia.

O caminho é pelo meio do nevoeiro que inventámos, ao encontro do sol que já nos está na pele mas não sentimos, em silêncio mas sem ouvir, escutando mas para dentro, em estado de semi-sono.

Esta é uma utopia do ser e a via mais rápida é a do despojamento, uma via ascética:

"Ter é tardar" ou "Os Deuses vendem quando dão".

Uma utopia sem espaço (por alguma razão renunciou a dar à Mensagem o título de Portugal, que era o que inicialmente esteve pensado), mas também sem tempo.

E esta utopia não é um projecto, é um regresso ou uma lembrança, uma espécie de retorno:

"No antigo seio, vigilante,/ De novo o cria!"

Um retorno não a nível material, porque a via é a da loucura, o caminho nebuloso:

"Sem a loucura que é o homem/ [...]?"

O tempo, o da eternidade:

"Mar sem fim é português" ou "O porto sempre por achar", a utopia está no caminho, não na chegada. O caminho é sentido e aceite como dor. E nesse momento a dor desaparece.

"Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor."

"Triste de quem é feliz!"

"Compra-se a glória com desgraça"

Um caminho crístico:

"Foi com desgraça e com vileza/ Que Deus ao Cristo definiu:/ Assim o opôs à natureza/

E Filho o ungiu."

Portanto, o caminho vai da desgraça à ... Graça. Sempre, o paradoxo.

Não há planos, não há essa certeza a que se chama fé. Mas há a fé da certeza.

"Não sei a hora, mas sei que há a hora."

A via do mar, o projecto marítimo realizado, ele vê-o como um primeiro esforço, o carregar da cruz, a renovar como via simbólica, já não num plano físico. A caravela, que foi cruz na água, de uma via-sacra que talvez ainda não nos dissesse totalmente respeito, é agora cruz a elevar-se pelo meio de algo que poderá já não ser o mar:

"E outra vez conquistar a distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa!"

É preciso encontrar ou recriar ou recordar o nosso nevoeiro. Que é sol. O sol intenso é ofuscante como nevoeiro. Por isso falamos dele, e não do sol. Vemos sol e ainda acreditamos que é nevoeiro.

Esta utopia, ao contrário das muitas que foram sendo criadas e passaram a integrar o repertório humano ao longo das épocas, não é uma utopia inventada por este autor, mas recriada, e insere-se numa tradição nacional que, no entanto, mais remotamente, por sua vez, se insere numa tradição mais ampla, a que ele dá voz de uma forma muito pessoal. Não é uma crença individual, não é uma criação literária, mas é tudo isso e é, ainda, a expressão pessoal e nacional de um arquétipo vindo do fundo dos tempos. É, sobretudo, algo para além disso. Ele expressa-o muito bem:

" [...] um grande anseio que Deus fez./ [...]?"

Esta nossa utopia é o desejo de Deus. Por isso, talvez seja a única utopia concretizável. Porque sim.

Ou, por outras palavras:

"Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? / Nós, Portugal, o poder ser. / [...]"

Como alguém falou, no outro dia, num programa de televisão, acerca de uma rapariga nascida e criada nas ruas de Nova Iorque e que, depois, através de esforço pessoal fez estudos universitários, ressuscitando a si mesma, tendo seguidamente dedicado a sua vida a reabilitar os que como ela antes, viviam ainda nas ruas. Essa rapariga teria afirmado, a propósito de poder fazer-se algo por essas pessoas:

"Nós somos aqueles por quem tanto esperámos."

Penso que é isso que F Pessoa quer dizer:

"Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!"

Entendo nesta afirmação que não é preciso esperar as condições óptimas, utopia não é isso, não é o impossível, porque já a temos, ela está connosco, é o anseio de Deus e nosso direito. Não é necessário esperar que o nevoeiro se dissipe, é pelo nevoeiro que temos de seguir e somos nós, que aqui estamos, nós, o nevoeiro, que temos de seguir. Nós somos o encoberto, ele esconde-se no mais profundo e no mais nebuloso de cada um de nós. E é pelo nevoeiro que procuraremos em nós o outro e no outro o "nós" que somos.

Num regresso ao futuro, pelo caminho do nevoeiro e da saudade. É a utopia do coração, iluminada pela luz da rosa, ressuscitada na cruz.

Finalmente, para além da noção de utopia que na sua obra esboça, o próprio Pessoa é, na sua complexidade, uma utopia em gente, sendo drama no sentido da representação, drama sem palco. Ou num palco móvel, espécie de experiência teatral num não lugar, como é o ser. Porque não foi no lugar do corpo o seu drama, mas no não-lugar do fogo da alma ardente.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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