2014-12-17, quarta-feira, 18h30:


Apresentação do Livro "Adeus Karl Popper", de Romeu Cunha Reis.

Apresentação por Sónia Duarte










Texto de Sónia Duarte na apresentação

Adeus a Karl Popper

Na sua escrita, Romeu Cunha Reis, tem demonstrado uma nítida preocupação com a história, a política e a atualidade, como revelam as suas obras de ficção anteriores - refiro-me a Esta Noite Forniquei com a Liberdade (2005), O Sentido de Estado de Patolino XVI (2008) e Relatório ao Comité Central (2013). O mesmo acontece também na obra que aqui nos reúne, cuja narrativa tem como cenário um departamento de investigação de uma fundação científica da área da Biologia e o ato de tomada de posse do novo diretor da mesma.

São múltiplas as questões filosóficas e epistemológicas suscitadas pelo texto em torno do próprio conceito de ciência, da relação entre esta e a religião, e em torno de diferentes propostas teóricas evocadas - como a do próprio filósofo Karl Popper, nomeado no título. É igualmente complexa a trama desta narrativa, dentro da qual se multiplicam e entrelaçam tempos, histórias e peripécias relativas às diferentes personagens. Nesta apresentação, não tenho, contudo, quaisquer pretensões de uma abordagem exaustiva, nem certezas de que tal fosse o mais acertado, pelo que procurarei concentrar-me sobre as questões que sinto serem as mais visíveis no texto e com as quais também me relaciono de forma mais direta, na minha atividade como bolseira de investigação. Refiro-me, concretamente ao quadro de constrangimentos orçamentais e de precariedade laboral que afeta a ciência e os seus trabalhadores. Tal quadro favorece - como é aliás notório nas personagens desta obra - preocupações "carreiristas", disputa de espaços de protagonismo e de poder, e diferentes manifestações de desonestidade intelectual que desvirtuam o fazer e o saber científicos. Mas, importa também referir-me - e aqui fá-lo-ei de forma particularmente vincada - a todo o contexto ideológico que promove essas mesmas circunstâncias e essas mesmas atitudes, aludidas nas epígrafes inicias da obra e tão presentes no desempenho das suas personagens e nas relações que estabelecem entre si.

Comecemos, no entanto, por apresentar os rostos da narrativa. São eles:

- Tomás Alves: o diretor recém empossado da Fundação e representante do que o texto identifica como "desvio tecnocrático", enquanto estratégia de "funcionalização" da investigação;

- Luís Soares: o candidato vencido e contraponto de Tomás Alves, enquanto representante de uma conceção alternativa da ciência: a da dimensão integral do conhecimento e a da prática científica enquanto função social;

- Aires Lima, o antigo diretor, a respeito de cuja morte se alimentam suspeitas de assassinato;

- Sandrinha, Inocentinha, Florindo e Geraldo: os investigadores em situação mais precária, caraterizados através dos mecanismos de exploração a que estão sujeitos e das suas estratégias de sobrevivência aos mesmos, mais ou menos coniventes, mais ou menos subservientes.

- finalmente, algumas personagens não diretamente ligadas ao processo de investigação propriamente dito, mas que, na sua relação com ele e com os que nele trabalham, evidenciam as suas contradições; são eles as figuras ligadas afetiva e familiarmente aos investigadores e ainda Anízio - o porteiro da Fundação - e o inspetor Arnóbio e respetiva família.

Este elenco de personagens, constitui, no fundo, um retrato irónico, caricatural e profundamente crítico de uma comunidade investigadora distante do seu compromisso original com a verdade e alheia ao apregoado espírito de partilha científica. A visão global apresenta um grupo profundamente hierarquizado, competitivo, manipulador e inerte na sua procura de conhecimento, onde apenas destoa e sobressai (como, aliás, opto por fazer aqui notar) a figura de Luís Soares, isolada, literal e figurativamente, pelas suas convicções científicas e ideológicas, duas dimensões que, no texto, se fundem numa só, como acontece nesta passagem, da p. 65:


[...] A ciência pura não visa objectivos ideológicos, mas que tem repercussões nas concepções do mundo, isso é um facto inevitável e que não deve inibir um homem de ciência.


O texto, de algum modo, propõe um debate que convoca estas duas dimensões. Trata-se do debate entre o paradigma pós-moderno de Karl Popper - aqui apresentado como o preponderante na comunidade académica e igualmente identificado com os objetivos da ideologia liberal dominante - por oposição ao paradigma da cultura integral - entre nós magnificamente exposto por Bento de Jesus Caraça - paradigma esse que surge associado a uma conceção da ciência como função social, reivindicada recentemente com acrescida intensidade pelas associações de trabalhadores científicos, os sindicatos da classe e outras organizações que defendem políticas científicas alternativas. Trata-se, portanto de um debate que é profundamente atual, num momento, como o nosso, em que o poder político reivindica e procura generalizar no discurso corrente um pretenso "novo paradigma" (dito de "excelência") para, na realidade, justificar cortes no financiamento e precariedade laboral - os seus verdadeiros recursos estratégicos, exemplarmente revelados nesta obra, a propósito do discurso oficial sobre os bolseiros (passo a citar, p. 33):


Apesar de a maioria dos presentes serem investigadores bolseiros, o ministro preferiu omitir no discurso qualquer referência às suas deploráveis condições de trabalho, sabendo o risco sério que correria de fazer eclodir um conflito. Era verdade que os mantinha no regime de semi-escravatura, com bolsas baixas, em regime de trabalho precário, sem direito a subsídio de desemprego, sem licenças de maternidade ou paternidade, ou seja, sem nada; [...]situações extraordinárias exigem medidas extraordinárias - era óbvio -, e só pondo-os em risco de não terem pão para a boca, sua e dos seus, poderia ter a satisfação de os ver dar tudo pelo progresso do país, fosse qual fosse o seu grau de patriotismo. E ser sábio e escravo ao mesmo tempo também não era coisa insólita - quantos romanos tinham ao seu serviço sábios gregos nessa condição!



O real propósito deste desinvestimento público na ciência não é, na verdade, instalar a meritocracia propagandeada, mas sim, reorientar para o mercado o custo e os benefícios que advenham desse investimento, como aliás esse mesmo discurso acerca da ciência deixa pontualmente transparecer. Chavões como competitividade, empreendedorismo e ligação à vida real, são, nesse discurso, expressões desvirtuadas e representativas de uma construção que urge desmontar, como faz Luís Soares, de quem se diz na p. 36:


Não, para ele, uma ciência pura não era um saber meramente especulativo, que ignorasse a realidade. O que aconteciaa era que a realidade a considerar, para ele, não era a dos mercados especulativos com necessidades criadas artificialmente por meios publicitários, não eram os fabulosos programas de armamento militar, mas sim as necessidades reais e fundamentais de todos os homens.

(fim de citação). Como se vê, a vida real não se confunde com o mercado. Já, a ciência é em si mesma uma descrição, explicação e proposta de construção do real, e a complexidade da realidade não cabe nem se esgota nas ditas áreas prioritárias que servem os interesses empresariais. O conhecimento da realidade passa tanto pela Biologia, pela Matemática e pela Física, por exemplo, como por domínios como as Artes e as Humanidades, e uma conceção integral da realidade será sempre contraditória com o que o texto designa como "guerra das ciências", a qual tem sido promovida através de orientações de financiamento para as já referidas áreas prioritárias, gerando uma disputa estéril entre ciências exatas e ciências sociais e humanas, entre ciência pura e ciência aplicada. Citando, Luís Soares, p. 214:


O nosso saber só pode fazer sentido desde que conectado e compaginado com o saber global, a totalidade do conhecimento, sob pena de nos transformarmos em pouco mais que robôs.

O sentido do título inscreve-se precisamente no esforço que esta personagem dedica a contrariar o pensamento de base que se opõe a esse ideal de conhecimento, na sua dimensão mais abrangente, libertadora e generosa. Livrar a comunidade científica da influência de Karl Popper institui-se como um objetivo fundamental para Luís Soares, cujo compromisso nesse sentido, pelo significado que para si assume o "popperismo", define Soares como uma figura de uma coerência e lucidez escassas e necessárias e com um posicionamento do qual, na minha opinião pessoal, carece cada vez mais esta nossa época, pretensamente alheia às implicações ideológicas da prática e do discurso científicos. Com efeito - como aliás revela ser disso perfeitamente consciente esta personagem -, a mudança histórica determina a substituição de uns paradigmas científicos por outros, na medida em que são nítidas- e passo a citar Luís Soares (p. 119) -

[...] correspondências entre os sucessivos económico-sociais e as ideias preponderantes na vigência de cada um deles.

É esta perceção que é responsável, em Luís Soares, quer pela confiança depositada por si no 25 de Abril, como tempo mais propício a um exercício da ciência acorde com as suas convicções, quer pelo seu desencanto com o tempo atual, quer ainda pelas expetativas que, mesmo assim, alimenta em relação ao futuro. Termino sintetizando a visão de Luís Soares a este respeito através das suas próprias palavras (p. 118):

E o que é isto senão história? E o que é isto senão ciência?