2017 6 de dezembro

Lançamento do livro "O RETRATO DE AQUILINO II - PINTURA SOBRE PALAVRAS", de Manuel de Lima Bastos


AQUILINO ... LIMA BASTOS

Estes livros de Lima Bastos sobre a vida e obra de Aquilino não são homenagens nem orações. Menos ainda reverências ou adulações.
São admirações desprendidas, gratidões esclarecidas. Não a Aquilino, que não está cá para ver nem ouvir, mas a nós, pela possibilidade que nos oferecem de sobre o seu génio pensar.
Só lendo será possível retribuir, todos e cada um, este obrigado a Lima Bastos pelos alongamentos que nos propicia e pelas curiosidades que nos alimenta, no desejo de que continue.

Livros cativantes, em formato peculiar, neles o autor utiliza toda a sua capacidade de pensar e toda a sua arte de dar palavra ao pensamento para agenciar Aquilino como seu Mestre e como alvo de identificação, seja nas sonoridades epocais, seja nas musicalidades universais. Com ele e connosco partilha os primores ancestrais da língua portuguesa, sabiamente miscigenando realidade e ficção, numa excepcional riqueza de estilo e organização.
São textos serranos, como os de Aquilino, estes textos de Lima Bastos à beira-mar concebidos. A sua identificação ao Mestre não é coisa local. É coisa mental. É por isso que gosto muito de Aquilino nunca o tendo conhecido, é por isso que gosto muito de Lima Bastos conhecendo-o bastante bem.
Associo-os no que dizem e no que escrevem, às vezes nem os distinguindo quando o segundo escreve sobre o primeiro, nesta especial envolvência que os eleva.

(...identificar-se é pensar-se como o outro... ... será tentar fazer como ele, sem perda de identidade...) Neste longo estudo imagino Lima Bastos a sonhar como Aquilino, não com Aquilino, quando nos apresenta o seu vastíssimo acervo de reflexões, considerações, citações, simbologias, metáforas e apologias, onde a cultura beirã e os seus horizontes e mentalidades ganham sem cansaço presença e condição.
Há sempre montes agrestes com pedregulhos lá em cima, como nas caracterizações de Aquilino e nos seus embalos de Malhadinhas, Demos, Soutosas, Lobos, Uivos e Romarigães... nas suas roupagens e motivações, nas suas sociologias e preocupações, nas suas telúricas deambulações... onde misteriosos volfrâmios subjazem para além dos tempos e das pessoas (misteriosidade).

Proporcionar obra de referência para quem eterno já seja (Aquilino não se pôs de pé para Lima Bastos ver: esteve sempre de pé, mesmo no Panteão deitado) e recoloca-lo em destacada evidência... é bonito!
Transplantar o mundo físico dos tempos de Viriato para o mundo político de tempos salazarentos, numa multiplicação de arquétipos, rebeldias, honorabilidades e liberdades que jamais arrefecem e particularmente se enobrecem... é obra!

Para um espírito analítico, admirações de escrita levantam inúmeras interrogações sobre o posicionamento de quem faz. Imitação, repetição, interesse, construção, reconstrução, serão equações de peso nas notas de avaliação.
Para além disso, escrever não será apenas pensar.
Escrever deturpa a fluidez natural de quem pensa: empobrece o que a fantasia enriquece, como costumo dizer, potencialmente desencaminhando propósitos, desígnios, deveres, desassossegos, causas, se o autor não dispuser de provimentos capazes de esgrimir. Jamais exprime o pensamento propriamente dito, a ondulação mental de quem cuida, a liberdade despida de academias e bibliografias que idealmente se contempla.
Implica outros voos. Outras complexidades, capacidades, desenvolvimentos e procedimentos.

Ficcionar uma história, por exemplo, tornar apetecível um romance, releva duas estrelas por parte de quem escreve: saber desenrolar percursos de fantasia e saber disfarçar o próprio no decurso da narrativa

(... sem fantasia e sem pessoalidade ninguém escreveria sucessos... ... ninguém admiraria Aquilino, não haveria literatura de Mestres...)

querendo eu com isto dizer que ficcionar será sempre um arranjo sobre o vivido e que as preocupações com a verdade e as obsessões com a justeza rarefazem espaços de ilusão e espaços da simbolização. Retiram êxito, porque diminuem comensalidades entre o admirador e o objecto admirado, na rotação em vice-versa que nestes livros se encontra e cuja ausência os comprometeria.
Explicando melhor, eu neste momento não vagabundeio nos interstícios da ficção porque racionalmente estou a pensar e a escrever. Essa será a diferença fundamental, para Aquilino e Lima Bastos: o primeiro ficciona, o segundo ficciona sobre as ficções do primeiro, enquanto eu apenas analiso, um degrau abaixo do seu patamar.

Quem disporá de armarias para adicionar qualidade a tais condições e a tão aparentes contradições?
Como será possível conceder virtude a textos que parecem de ficção e de não ficção ao mesmo tempo, verdadeiros e fantasiados em simultâneo, nesta simplicidade que nos prende?
Adequar mecanismos de escrita, será a resposta.
Não sendo ocasião de descrever os respectivos mecanismos, permito-me apenas salientar a sua importância e os sacrifícios de quem tenta discorrer ao correr da pena, como aqui parece acontecer,

(... comigo sempre assim foi... ... cada revisão será sempre a última até que a próxima aconteça, sempre na suspeita de que nos outros as palavras brotam em gloriosos improvisos e torrenciais eloquências...)

na intenção de frisar o que acima dizia... é bonito, este trabalho... ... é obra, este trabalho...
e agora acrescentar... é uma trabalheira, este trabalho... há um enorme trabalho neste trabalho solitário...
facto que me obriga a lembrar quanto será penoso escrever, para todos e em todas as circunstâncias, salvo no Paraíso, único local onde os humanos rabiscam cantorias sem problemas nem sofrimentos porque as boas almas jamais conseguiram aprender a ler e a escrever.

Numa alternativa mais terrena, levemente procurando entender a conjugação Aquilino/ Lima Bastos, penso que será útil pesquisar quem serão os nossos Mestres.
Porque serão Mestres, como nos relacionamos com eles, quais as funcionalidades éticas e estéticas que imaginariamente com eles congregamos.

Todos tivemos pessoas que sentimos como Mestres.
Todos tivemos considerações a incluir, gratidões a erigir.
Há sempre quem se distinga e culto mereça: quem intensamente lute por ideias, humanizações, progressos, culturas, artes: quem insatisfeito confronte a eterna interrogação de quem somos e do que andamos por aqui a fazer

(...sendo possível admirar com justa causa, sem cadências de identificação...)

Todos tivemos igualmente professores.
Muitos em número quase sempre, poucos de que nos lembremos também quase sempre, com quem, para além das eventuais trocas técnicas e escolares hierarquicamente instituídas, memórias significativas não aconteceram, muito menos identificações.
Como será possível rendibilizar esse binómio professor/aluno e convertê-lo no de mestre/discípulo que estes escritos revelam?

Para o aluno, em qualquer tipo de ensino e em qualquer tipo de atmosfera, artística ou não, Mestre será quem dignifica os encontros em que se compromete. Quem numa segura representação desperta o que todo o crescimento ambiciona: uma idealização consequente, num processo até ao fim, sejam quais forem as capacidades intrínsecas do sujeito.
Por inteligência, intuição, sentido histórico, sensibilidade, Mestre será quem desmorona os armamentos tóxicos que o poder de ensinar demasiadas vezes utiliza. Quem propicia criatividade e deixa por isso de ser apenas professor, porque exemplarmente gratifica as condições do passado de cada um e as suas instruções de futuro, soberanamente impregnando o aluno de consistência e lealdade.

Quais as condições para que tal aconteça?
Como se transmitirá tal mestria?

Do lado do discípulo, sendo o ensino, na sua essência, uma amnésia de retorno alternativo e de escolha racionalizada, Mestre será quem acima de tudo transmite a natureza íntima das questões.
Quem despido de catecismos, modelos e músculos de memória propicia abstracionismos informados para além dos livros.
Quem transmite conhecimento e oficina numa autenticidade que no discípulo se outorga, mais preocupado com a arquitectura do pensamento que da coisa já pensada, mais evocador do fermento que da coisa fermentada, mais propulsor do caminho que da coisa encaminhada.

Tais mestrias e tais transmissões alargam-se paulatinamente na subjectividade de as trocar e receber, sem deliberações cognitivas,

(... como quem canta porque na infância ouviu cantar...)

à maneira da criança que vai descobrindo as chaves do Universo porque não duvida da sua existência nem do que no dia seguinte acontecerá como benéfica relação.

Ser Mestre será impedir certezas.
Será transmitir, sem esforço e sem conclusão, as liberdades e mutualidades das parcelas livres de cada um.
Alguém saturado jamais o poderá fazer. Jamais ultrapassará os conteúdos narcísicos e as matérias inertes que o emuralham e nada criam, porque as sapiências solenemente encadernadas fazem da História apenas o acto de a contar, nunca o acto de a discutir ou prosseguir

(... os meus Mestres nunca se preocuparam em dizer-me o que faziam nem porque faziam... nem nunca insistiram no que eu deveria fazer. ... mas eu sabia e eles sabiam que partilhávamos projectos, pensamentos e benfeitorias... através das inerências que só os silêncios comunicantes possibilitam...)

Ser discípulo será ganhar possibilidades de aproximação e distanciação sem interesse nem recompensa.
Será ressuscitar o melhor que somos e o melhor que queremos ser, através das pessoas a quem atribuímos superiores argumentos de identificação.
Será recordar que só pelos Mestres crescemos e que a sua morte nunca acontecerá, porque nunca pode acontecer.
É isso que Lima Bastos nos diz quando nos fala de Aquilino: da obrigação de lhe sobrevivermos, de sermos seus mensageiros, sem inveja e com gratidão.
É isso que claramente o motiva, nesta magnífica pintura de palavras que nos seus livros se desenham.

PORTO
UNICEPE
6 Dezembro de 2017


Jaime Milheiro
(Psicanalista Ensaísta)






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