71º Jantar de Amizade UNICEPE

Quarta-feira, 14 de Dezembro de 2005, 19h45m

"SILÊNCIO DE VIDRO "

Conversa com Eugénia Cunhal


e apresentação da sua obra por

José António Gomes
Professor da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. Director da revista Malasartes e crítico literário.
Ver documento escrito para esta iniciativa

Momento musical por Carlos Cunha


Introdução à leitura da obra de Maria Eugénia Cunhal

José António Gomes

A lista bibliográfica que antecede o texto principal de alguns livros de Maria Eugénia Cunhal dá-nos conta de que o essencial da sua obra editada em volume abrange quatro títulos: dois de narrativa e outros tantos de poesia. O que é apresentado como seu livro de estreia, Silêncio de Vidro, data de 1962 e consiste numa recolha de poemas, cuja reedição de 2005 traz na capa o delicado e expressivo desenho de uma mulher trabalhadora (uma ceifeira?), da autoria de Álvaro Cunhal. A ele se seguiram História de um Condenado à Morte (1983), a poesia de As Mãos e o Gesto (2000), com um desenho de capa de Cipriano Dourado, e as histórias de Relva Verde para Cláudio (2003), que, também na capa, ostentam a reprodução de um óleo de Avelino Cunhal. Este último volume comporta dez narrativas curtas, cinco delas referidas como inéditas, as restantes saídas antes em publicações periódicas como os jornais Sol (o primeiro conto, de 1946), República, Diário de Lisboa, O Diário e a revista Vértice, na qual foi publicado o terceiro conto da colectânea, com o pseudónimo de Maria André.

As imagens escolhidas para as capas dos três livros com a chancela da Editorial Escritor (os dois de poesia, além de Relva Verde para Cláudio), se em parte apontam para a relevância dos afectos e cumplicidades familiares em Maria Eugénia Cunhal (eixo que a sua escrita poética confirma), por outro lado constituem elementos de orientação da leitura. E chamam, pelo menos, a atenção para duas outras linhas que se cruzam na sua produção literária: a que diz respeito ao universo feminino e a que gira em torno da infância. Uma linha tão visível em Silêncio de Vidro, que alguns dos seus poemas – até pela elaborada simplicidade discursiva, nos planos lexical e sintáctico, pela parcimónia imagística e pela curta extensão de várias composições – poderiam ser lidos a crianças ou por crianças. A propósito desta poética despojada, recorde-se um depurado poema sobre o próprio trabalho de depuração – que é também procura do essencial – retirado de As Mãos e o Gesto (p. 22):

«Regas as plantas, como eu rego as palavras
Elas nascem no meio das frases e eu
Corto aquelas que estão a mais. . .
Porque, assim como tu preferes uma única rosa que seja bela
Eu prefiro uma palavra simples que diga tudo.»

Silêncio de Vidro,
o livro de estreia, é composto por vinte e nove poemas de carácter lírico, sem títulos, em que um sujeito feminino se implica num registo discursivo propositadamente marcado por certa transparência ao nível semântico, num tom quase sempre discreto, mas que emocionalmente nos toca e de alguma maneira justifica a metáfora que serve de título à obra. Ou seja, trata-se de uma voz que aparentemente não pretende ocultar (como o vidro transparente), e se ergue do silêncio para afirmar, de modo frequentemente intimista, a sua individualidade de mulher, e oferecer determinada visão do mundo e das coisas – como a que nos dá do «mistério tão dolorosamente verdadeiro / dos sapatos velhos nos pés (…) [de uma] mulher», p. 15; ou a dos namorados pobres, feios e pelintras, cuja felicidade, mesmo assim, suscita na voz que fala o desejo de uma sorte idêntica na companhia do amado (pp. 53-54). Mas esta voz evoca também memórias familiares e de infância, regista a passagem do tempo e o envelhecimento e deixa transparecer os seus sentimentos perante uma situação familiar dolorosa, como aquela que o poema XVII (dos mais belos do livro) testemunha, em provável alusão a uma das prolongadas prisões de Álvaro Cunhal, irmão de Maria Eugénia. Um poema em que, todavia, é possível ler a confiança num «mundo novo», onde tais ausências, tão longas, não mais seriam possíveis: .

«Quando vieres
Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o seu cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.
Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.


Quando vieres
Nenhum de nós dirá nada
Mas a mãe largará o bordado
O pai largará o jornal
As crianças os brinquedos
E abriremos para ti os nossos corações.

Pois quando vieres,
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Quando vieres.» (pp. 43-44)


São de assinalar ainda as tocantes cenas infantis que neste livro se desenham (quase sempre indissociáveis de um olhar crítico sobre um mundo injusto), como as dos poemas III, V e XV, este último incapaz de ocultar uma veemente condenação da guerra e das suas consequências trágicas – mas imprimindo-lhe sempre, aqui como noutros textos, aquele tom de quem sabe quebrar o vidro do silêncio com a pura verdade das suas palavras, pronunciadas em tom discreto mas firme.

Contudo, se esta atenção crítica ao mundo, a par da consequente pulsão cívica e de compromisso com uma ética reconhecível percorrem, sem quaisquer sinais de panfletarismo e retórica inútil, a escrita de Maria Eugénia Cunhal (traço igualmente presente nos contos de Relva Verde para Cláudio e na sequência poética «Spartacus» de As Mãos e os Gestos, pp. 64-66), talvez se possa afirmar que o interesse primeiro do sujeito que nestes poemas discorre é o elemento humano, a existência íntima de quem não consegue abstrair-se da presença dos outros, a vida considerada quer em seus pequenos ou grandes motivos de exaltação, quer nas sombras e fantasmas que a povoam («Há quem creia em Deus e o veja em toda a parte. / Eu acredito em ti / E vejo-te em tudo o que na vida me dá profundo gosto de viver, / Tudo o que me sorri / E também em tudo o que me faz sofrer.» – Silêncio de Vidro, p. 21).

Por isso, não será de estranhar que esta seja também uma escrita do amor e sobre o amor, sobre os encontros e desencontros entre a mulher e o homem, em que um eu se dirige, com frequência, a um tu muitas vezes ausente. Um veio que ganha expressão narrativa no conto «O relógio» (de Relva Verde para Cláudio, pp. 57-64) e cuja nitidez se acentua em As Mãos e o Gesto, um livro mais uma vez escrito sob o signo do silêncio, essa espécie de vazio a preencher pelo brilho de um olhar, pelo sentido profundo de um aceno ou por um discreto movimento de dedos, capazes de revelar um universo inteiro de sentimentos, desejos ou decepções.

Esta meditação sobre os encontros e desencontros da relação a dois, que por vezes parte da ilustração de breves cenas do quotidiano, encontramo-la em várias das trinta e duas composições (algumas são sequências de textos) do livro As Mãos e o Gesto, sendo um bom exemplo o do poema «Raízes» (p. 16):

«Sei que te foste embora
Ouvi bater a porta


No fundo esbranquiçado do cinzeiro
Um cigarro esmagado pôs um ponto final no fim da tarde
E o silêncio que os teus olhos enchiam de palavras
Envolve-me de frio e nevoeiro.
Sei que te foste, sim.
Mas o desejo imenso de encontrar-te consegue
destruir a solidão

E em mim ficas presente

Pode a vida fechar todas as portas
Por entre os labirintos que ela invente
Irei seguindo o eco dos teus passos
Pode arrancar-me à força dos teus braços
Que os laços que nos ligam são de pedra
E a minha mão está agarrada à tua
como raiz à terra.» .

Bastaria colher, um pouco ao acaso, exemplos das opções lexicais destes versos (cicatriz, saudade, solidão, ausência, noite, angústia, feridas, etc.) para confirmar uma disforia que atravessa a escrita de As Mãos e o Gesto, prolongando certos traços de Silêncio de Vidro, apesar do gosto de viver que esta mesma poesia não poucas vezes enuncia. Uma poesia capaz assim de aflorar a alegria que pode nascer das pequenas coisas, dos breves momentos solares da existência, de um simples gesto, olhar ou palavra. Uma poesia que, no reverso da escuridão, canta, numa espécie de afectuosa melodia, o encontro entre seres que procuram, um no outro, os «gestos alados» (p. 37) e que evidencia um gosto especial na pronúncia de certas palavras, pouco usuais na poesia de hoje, como amor e partilha. Talvez não seja ousado dizer que é esta vertente, marcada por uma positividade discreta e pelo «gosto de viver», aquela que, não obstante as sombras, deixa um rasto mais fundo no espírito do leitor.

Justamente aquela dimensão positiva com que termina também a mais longa e uma das mais belas e conseguidas narrativas de Relva Verde para Cláudio, precisamente a última, que empresta o seu título ao livro. A ela voltaremos

Neste livro de prosa narrativa, reconhece-se a arte de captar, nos seus traços essenciais, um ou mais momentos significativos de uma vida. Estribados nesses momentos, temporal e espacialmente circunscritos, ficamos além disso a conhecer, por vezes em breves apontamentos, as condicionantes de uma existência humana; condicionantes sociais, culturais, por vezes económicas e até políticas, além das pessoais. Vemos ainda como a escrita de Maria Eugénia Cunhal maneja com habilidade os códigos próprios da narrativa curta, e sabe dotar cada um dos episódios contados da carga dramática que o individualiza e faz perdurar esta ou aquela personagem na memória do leitor. . .

Com excepção de um dos contos, em todos eles se entrevê um cenário urbano, lisboeta, que serve de pano de fundo a diversos casos, quase sempre protagonizados por mulheres, em que um reconhecível poder de observação parece ter captado pequenos e grandes dramas de um quotidiano em geral doloroso, que a escrita ficcional transfigura e torna verosímeis. Um quotidiano português, enraizado em diferentes contextos históricos, mas não raro marcado pela pobreza, visível ou escondida, onde se sente o peso das desigualdades e da injustiça social, da indiferença e do egoísmo, e onde escasseiam os gestos de afecto, excepto talvez na última narrativa e no breve mas feliz idílio dos protagonistas do conto «Uma história simples».
Em «Relva verde para Cláudio», já citado, abordam-se os profundos laços de amor existentes entre uma mãe, Vera, e o seu filho, Cláudio, o qual empreende, já no final, uma viagem à boleia com Rui. Atravessando o seu país e depois, a salto, a Espanha e a França, ambos parecem recusar, nesse gesto, uma guerra injusta que alguém insiste em manter (fora de portas?), no que configura uma alusão ao período da guerra colonial. Mas esta novela, onde habilmente se joga com duas vozes – a do narrador e a de Vera –, é também a revisão da vida de uma mulher. Uma mulher que sentira na adolescência os ecos da Segunda Guerra Mundial e da derrota do nazismo e que, educada em valores de esquerda, nutre pelo pai – um antifascista que conhecera a clandestinidade e a prisão – admiração e afecto sem limites. Talvez por isso, Vera não contrarie a vontade do filho, por muito sofrimento que isso lhe cause. Na cena final, já em França, há um vislumbre de felicidade para Cláudio e dela se desprende uma nota, repita-se, de positividade.
E é com essa nota, precisamente, que apetece também encerrar esta breve apresentação da obra de Maria Eugénia Cunhal, uma escritora, sem dúvida, a descobrir.

Porto, 12/12/2005


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