Espaço Associados



      

AS CORES


por Miguel Boieiro




Amigos, críticos e detratores de todas as cores, fartos das minhas croniquetas verdes, vêm insistindo para que escreva antes sobre as experiências de âmbito social que acumulei ao longo da minha terrena existência.

Perante a negritude que o futuro próximo, e quiçá o longínquo, parece prenunciar, é irrecusavelmente aliciante, voltar atrás para caracterizar a vida com as cores que ela se apresentava há volta de sessenta e tal anos. Em simultâneo, será uma pesquisa feita nas profundas do subconsciente e um exercício algo nostálgico, emocional, mas não saudosista, sobre a vida, a minha vida, entenda-se, tal como a divisava com seis anos de idade. Desculpar-me-ão os pessoalismos e as ingenuidades que forçosamente hão-de aflorar nas minhas toscas descrições infantis.

Ora quando tinha seis anos e para além do que a natureza, a grande mestra, me oferecia, as únicas cores que dispunha eram o preto e o branco. O preto quando gatafunhava a lápis naqueles cadernos escolares de duas linhas para que as letras merecessem o epíteto de caligrafia. O branco, quando escrevia com uma pena de xisto nas pequenas ardósias que nós chamávamos “pedras”. Para reproduzir qualquer coisa, tinha que ser a preto e branco. Confesso, aliás, que não tinha jeito algum para o desenho. Bem tentava desenhar casas, galinhas, árvores e barcos, mas saiam-me sempre imagens disformes, longe da realidade. Televisão não havia e quando apareceu, era a preto e branco. Aos domingos ia ouvir o relato da bola à taberna da tia Celeste e lá imaginava o verde do Sporting, o azul-escuro do Belenenses e o encarnado do Benfica. Do Porto, não! Só o tio Leques é que era portista. A designação “vermelha” não se usava, era conotada com a cor da capa do belzebu, com o comunismo, com a revolução e portanto, liminarmente proibida. Nos jornais, que também só eram a preto e branco, quando algum cronista mais afoito escrevia “vermelho”, logo a censura cortava e substituía por “carmesim”, “escarlate” ou “encarnado”.

Pelo Natal, o Menino-Jesus colocou na minha bota … sapatos eram um luxo, naquele tempo usavam-se botas e cardadas para não desgastar as solas … colocou na minha bota, dizia, deixada na chaminé, as suas prendas tradicionais. Acrescente-se que, na altura, o “benfeitor” era sempre o Menino-Jesus e não aquele Pai-Natal, com ares de pedófilo, vestido de encarnado vivo, que posteriormente foi criado pela multinacional Coca-Cola para instigar o consumo da conhecida beberragem química inventada pelos americanos. E quais foram os presentes que o pobre Menino-Jesus dos meus pais, deixou na minha botinha? Nada mais, nada menos, do que uma laranja sem bicho, daquelas apanhadas diretamente da árvore, uma moeda de dez tostões e uma caixinha com meia dúzia de lápis de cores, da marca “Viarco”. Que maravilha! Eu nunca tinha tido tantos lápis de cores ao meu inteiro arbítrio: verde, azul, amarelo, anil, laranja e vermelho (perdão, encarnado, vá de retro satanás). E vai daí, toca a rabiscar em tudo o que era branco, paredes caiadas, inclusive.

Esta foi a primeira e mais duradoura sensação de manipular as cores, embora baças e irregulares, a meu belo prazer, com algumas bofetadas à mistura quando pintar se tornava sinónimo de sujar. Este singelo episódio, que à luz dos atuais tempos parece surrealista, marcou a minha infância e repercutiu-se pela vida fora. Pasme-se como eclodiu hoje, em tempos de crises e desgraceiras de multifacetadas cores.

MIGUEL BOIEIRO

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