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Finlândia - Natureza viva, cultura florescente


por Miguel Boieiro



1 - O Congresso
"Vivanta naturo, floranta kulturo" foi o tema central do 104º Congresso Universal de Esperanto realizado na cidade finlandesa de Lahti de 20 a 27 de julho de 2019. O Congresso que todos os anos se organiza (o do ano passado teve lugar em Lisboa) contou com cerca de mil participantes oriundos de mais de 50 países e constituiu, como sempre, um acontecimento sublime que, para além da discussão dos principais problemas da humanidade, fomenta o conhecimento, a partilha de saberes e a fraternidade dos ativistas da paz e da cooperação internacional.
O tema foi muito bem escolhido porque a Finlândia é um Estado notável com 75% da sua superfície coberta por florestas. Registe-se que a área total do país supera os 390 mil km2, mas a sua população não ultrapassa 5,5 milhões de habitantes, os quais são dotados de elevados níveis académicos e grau de civismo exemplar.
Durante uma semana assistimos a várias palestras interessantes, não a todas porque elas realizam-se em simultâneo, restando tempo escasso para viajar pelo país. Mesmo assim, integrámos três das muitas excursões programadas.

2 - Isku Areena
No "Sunnuntai", 21 de "Heinäkuu", decorreu a Sessão Solene Inaugural do Congresso (um parêntesis para informar que as palavras entre aspas significam respetivamente "domingo" e "julho". Ainda dizem que o Esperanto é uma língua difícil!). O pavilhão desportivo Isku Areena é um polifacetado edifício coberto onde se praticam, nas épocas próprias, várias modalidades com destaque para o hóquei no gelo. Lá perto está a altíssima instalação para saltos de esqui. Por isso o jornal do congresso, editado diariamente ostentava o título "Saltejo", palavra que em Esperanto, quer dizer "Local dos Saltos". Depois dos vários discursos dos membros da Associação Universal de Esperanto, os representantes de cada país apresentaram as suas saudações. A este escriba coube a honra de representar Portugal desejando bom trabalho aos participantes para prestígio e glória da língua internacional.
Assistimos a algumas das muitas palestras e eventos interessantes, concretamente, sobre:
- Língua "sameia", idioma indígena falado no norte da Finlândia e também na Rússia, Suécia e Noruega. Realce-se que a UNESCO proclamou 2019, o ano das Línguas Indígenas. Na Finlândia há três línguas oficiais: o finlandês (88%), o sueco (5,2%) e o sameia (0,04%).
- ILEI - Associação dos Professores de Esperanto, cujo próximo congresso de realiza em Quebec City, uma semana antes do Congresso Universal que, em agosto de 2020, será em Montreal (Canadá).
- Cultura e Natureza na Arménia, incluindo a projeção de deslumbrantes paisagens deste país da antiga União Soviética.
- Geologia e Natureza na Finlândia, com destaque sobre as características botânicas nas quatro estações do ano. No país existem 188 mil lagos. O que está junto a Lahti tem um perímetro de 60 quilómetros.
- Ensino na Finlândia. Participámos em duas aulas de aprendizagem do finlandês, com fracos resultados, diga-se de passagem.
- Sessões com Katalin Kováts e Sylvain Lelarge que, para além de estimularem a prática do Esperanto, constituem sempre aliciantes momentos teatrais.
- Espetáculo com canções do casal "Kajto".
- Filme "La Regino de la Serpentoj" (A Rainha das Serpentes).

3 - Lahti
Efetuámos um percurso pedestre com guia habilitada para nos dar a conhecer um pouco desta cidade situada a cem quilómetros a nordeste de Helsínquia. Tem cerca de 100 mil habitantes e está intensamente arborizada e rodeada de florestas. Em 2021 terá a honrosa classificação de capital europeia das cidades verdes. O lago Vesijärvi bordeja uma parte da urbe com encantadores jardins, restaurantes, docas de barcos de recreio e o centro musical Sibelius onde assistimos a um belo espetáculo de boas-vindas. O edifício está localizado onde havia uma grande carpintaria. O uso da madeira é aqui privilegiado, configurando belos efeitos. No largo em frente do Sibelius visitámos o Kariniemen, loja e museu de escultura e arte em madeira. Eis as espécies expostas nas respetivas tábuas primorosamente aplainadas que se descrevem com a sua nomenclatura botânica:
Juniperus communis, Betula pendula, Tilia cordata, Ulmus glabra, Acer platanoides, Picea abies, Alnus glutinosa, Malus domestica, Populus tremula, Pinus sylvestris, Betula pubescens, Salix caprea, Fraxinus excelsior, Sorbus aucuparia, Alnus incana, Larix sibiirca, Prunus padus.
Durante a caminhada pela floresta a guia chamou a atenção para outra árvore que proporciona uma valiosa madeira cuja textura é marmoreada com grande efeito decorativo. Trata-se da Betula pendula, variedade carelica, que em inglês dá pelo nome de Curly birch. Foi até criada a Sociedade Finnish Curly Birch composta por entusiastas e profissionais que estudam as características da espécie e organizam visitas anuais às plantações.

4 - Kinnari Tila
Nos congressos de Esperanto que duram habitualmente uma semana, a quarta-feira é sempre totalmente dedicada às excursões de um dia inteiro e os trabalhos ficam encerrados. Entre as várias hipóteses, escolhi a opção de passear pelos espaços rurais e apreciar a natureza.
Kinnarin Tila é uma propriedade agrícola gerida pela mesma família desde 1667 e já se encontra na 13ª geração. Fomos amavelmente recebidos pela sua proprietária que nos proporcionou uma visita guiada. A herdade possui 1121 hectares mas só 50 hectares estão destinados à agricultura, o resto é floresta. Vimos um extenso campo de aveia, avistámos o secador para os cereais e entrámos na pequena loja com produtos biológicos "gourmet". Foi-nos explicado que a caça é aqui uma obrigação porque os alces provocam devastações na floresta e causam acidentes. No entanto, o exercício da caça obedece a regras rígidas, a distribuição das quotas de abate é feita por associações e a posse das armas é rigorosamente controlada. O símbolo animal da Finlândia é o urso castanho que existe em todo o país.

5 - Kiikunlähde
Trata-se de um lago de águas turquesas com 400 metros de comprimento que chega a ter 100 metros de profundidade na parte mais funda. Possui 7 mil metros cúbicos de água puríssima proveniente de 14 nascentes. A sua temperatura é sempre de 5 graus, quer no inverno, quer no verão. A Unesco classificou o local com tendo a água mais pura do mundo. De resto, o lago insere-se num parque natural cerrado de arvoredo, pelo que o acedemos após caminhar a pé cerca de um quilómetro, não havendo permissão para que os veículos a motor possam circular.

6 - Hollola
É uma aldeia que possui uma enorme igreja medieval construída em pedra numa altura em que os templos eram construídos em madeira. Começou por ser um santuário católico e depois passou a luterano que é o credo predominante no país. No átrio há diversos frescos medievais que reproduzem episódios bíblicos. Nos pesados portões de madeira incrustações em ferro mostram-nos cenas de caça. A igreja, cuja construção se iniciou em 1495, é a 3ª mais espaçosa das que foram edificadas em alvenaria nessas épocas remotas em que o país estava integrado no reino da Suécia. Tem grande prestígio pelo seu enorme cemitério ajardinado e faz parte duma rota cultural e religiosa que se inicia na Igreja da Cruz em Lahti, a qual, noutro dia, também visitámos.

7 - Koiskala
O almoço foi servido noutra propriedade rural denominada Koiskala. Entre as várias iguarias vegetais que nos escusamos de descrever, anoto a das couves tostadas, crocantes e estaladiças, um autêntico deleite. Seguiu-se depois um passeio para observar a vegetação e escutar os relatos do atual proprietário desta quinta, fundada em 1650. O primeiro dono, um nobre sueco era muito estimado e o seu funeral constituiu uma procissão a pé de dezenas de quilómetros até ao cemitério de Hollola onde o mesmo está sepultado. Dos 3 mil hectares que a propriedade tinha inicialmente, hoje só restam 140. Para além da produção de vegetais, flores, plantas medicinais e pequenos frutos (groselhas e framboesas), o principal negócio é o da madeira. As árvores são muito altas e robustas com destaque para as pináceas denominadas larícios siberianos (Larix sibirica). Os trabalhadores gozam férias no inverno, altura em que a temperatura ronda os 20 graus negativos. Mas no verão, agora com cerca de 30 graus positivos, os campos estão verdejantes e floridos. Entre as simples plantas rasteiras, registámos conhecidas herbáceas, tudo em grande profusão: bardanas, milefólios, tussilagens, taráxacos, bolsas-de-pastor, pés-de-leão, tanchagens, labaças, sempre-noivas, urtigas de folha pontiaguda, trifólios e gramíneas. Todavia as mais proeminentes plantas que encontrámos por todo o lado com as suas belas flores rosa-vivo foram os encantadores epilóbios (Ver as características botânicas e aplicações fitoterapêuticas do Epilobium angustifolium, no 1º volume do meu livro "As Plantas, Nossas Irmãs").

8 - Estação de tratamento de resíduos PHJ - Päijäi - Häme Jätehuolto
A visita guiada a esta estação de triagem e tratamento de lixo foi, para este cronista de meia-tigela, dos mais interessantes eventos que nos foi dado presenciar porque, conhecedores de outros sistemas em várias partes do mundo, jamais havíamos visto algo de tão conseguido. Um dos lemas patente no sofisticado empreendimento é, por si só, esclarecedor: "Waste is beautiful", ou seja, "O lixo é belo". O PHJ abrange uma área de 70 hectares e trata todos os resíduos sólidos da região de Lahti que abrange 10 municípios com 203 mil habitantes, não contando com as numerosas pessoas que vêm passar férias de verão e de inverno nesta zona atraente do país. O Centro, que percorremos de autocarro, é composto por 20 divisões especializadas para os vários tipos de lixo com realce para a fábrica de biogás e para a produção de composto destinado à agricultura.
Naturalmente que o sucesso do sistema tem também a ver com o nível de civismo dos moradores que procedem meticulosamente à separação inicial dos desperdícios domésticos. Enquanto em Portugal temos apenas 4 contentores específicos, eles aqui têm 10 que discrimino em inglês: "bio waste, carton, glass, metal, plastic, paper, energy waste, mixed waste, dangera waste, electrical equipment".
Não se veem embalagens de plástico ou de vidro abandonadas nas ruas, porque os consumidores dispõem de locais automatizados que ao receberem os recipientes usados recebem, em troca, senhas que lhes permitem obter descontos aquando das compras. Algumas pessoas mais indigentes vasculham os caixotes na busca de embalagens que os distraídos abandonam e dessa maneira logram aumentar os seus proventos. Em Portugal ficariam ricos!
As lojas que vendem aparelhos são obrigadas a receber os usados para permitir a reciclagem e o reaproveitamento de peças.
No início da visita assistimos a um vídeo de apresentação e foram-nos fornecidos detalhados informes sobre a organização e o funcionamento do complexo. Tudo com muito rigor. Saibam que até a passarada que reside naqueles 70 hectares (corvos e gaivotas) é monitorizada semanalmente.
Não acrescentamos mais para não enfastiar os leitores. Para os mais interessados, nomeadamente para os autarcas da "nossa praça", deixamos uma simples recomendação. Venham a Lahti visitar este complexo!

9 - Linnaistensuo
É este o nome da reserva protegida que se situa muito perto da estação de tratamento dos lixos. Foi efetuada uma caminhada de alguns quilómetros por estreita vereda entre denso arvoredo composto por altíssimas coníferas. Depois penetrámos numa zona pantanosa, apenas provida de vegetação rasteira. O percurso fez-se através de tábuas presas por "pregos" de madeira em troncos roliços. Pudemos então colher e provar saborosos mirtilos e arandos silvestres que abundantemente ladeavam a senda. Na Finlândia toda a gente pode penetrar livremente nas florestas públicas ou privadas para acampar e colher cogumelos (por diversas vezes vimos à venda cantarelos (Cantharellus cibarius), a nosso ver dos mais deliciosos macrofungos que a natureza nos presenteia), groselhas, framboesas, mirtilos, arandos (cranberry)... É claro que, para foguear, será sempre necessária uma autorização especial.
Mais, explicou-nos a guia, expressando-se em finlandês, mas que um "samideano" cuidadosamente ia traduzindo para Esperanto, que são recolhidos todos os anos 10 mil kg de pequenos frutos silvestres. Entretanto, são os ursos os principais devoradores, principalmente de mirtilos.

10 - Helsínquia
Fora esta uma digressão turística e teríamos programado passeios pela capital, considerada a "Pérola do Báltico". Todavia, a viagem destinava-se essencialmente à participação no Congresso de Esperanto e durante uma semana de muito calor, visto que a temperatura por vezes ultrapassava 30 graus, enquanto em Lisboa não passava dos 25, muita Finlândia ficou por ver. Alguns optaram por sacrificar a sua presença no Congresso, enveredando casualmente por passeios nos lagos (o país conta com 188 mil lagos), outros destinaram um dia para visitar Helsínquia, outros frequentaram agradáveis praias naturistas e outros ainda, prepararam, pós congresso, viagens à Lapónia e à Rússia. Este pobre cronista, acompanhado pela esposa algo fisicamente incapacitada, para além do que já foi dito, limitou-se a reservar no dia derradeiro cerca de 4 horas para a capital.
Saindo manhã cedo de Lahti, optou-se por viajar de autocarro, preterindo o comboio o que demoraria menos tempo, mas valeu a pena porque permitiu apreciar melhor a paisagem florestal e a curiosa geologia em que sobressaiam os rochedos de granito vermelho. Saímos mesmo no centro da cidade a qual nos surpreendeu pelo intenso movimento de pessoas e pelos multifacetados e luxuosos estabelecimentos comerciais. De relance, passámos por um mercado de alimentos "vegan" e, mais tarde, pela festa da cerveja apinhada de gente a petiscar e a beberricar. Pagámos 2 € por um copo, bebemos uma cidra e à saída devolvemos o copo, recebendo de volta os 2 €.

11 - Jardim Botânico Kumpula
Junto à enorme estação ferroviária situa-se o jardim botânico e, como é de calcular para quem conhece as manias do cronista, foi aí que gastámos o tempo sobrante antes de nos dirigirmos ao aeroporto. A entrada é grátis, apenas se paga para visitar as estufas. Havia canteiros especializados com descrições em inglês para os musgos, os líquenes, as cianobactérias e os fetos. Placas indicavam que os fetos desenvolveram-se no planeta há cerca de 360 milhões de anos e os "lycophytes" há mais de 400 milhões. Bom, a gente acredita, afinal mais milhão, menos milhão não terá muita importância. Havia também um bem organizado canteiro com espécies comestíveis, aromáticas e medicinais que até tinha uma videira. Uma referência final para destacar, entre as árvores, as robustas e variadas pináceas (Picea glauca, Picea abies, Picea mariana, Picea pungens, Picea sitchensis...)

Conclusão
À entrada do avião que nos trouxe para Lisboa, deparámo-nos com um grupo de 40 portugueses que ali terminaram a excursão aos países bálticos, infelizmente nenhum era esperantista, mas proporcionou-se um agradável convívio.
Este relato, breve para quem gosta de ler, mas extenso para quem se enfadonha com leituras, transmite meras opiniões pessoais, provavelmente algo discutíveis e seguramente demasiado incompletas. Se mesmo assim, conseguir acrescentar conhecimentos e suscitar curiosidades, o cronista já se dá por muito satisfeito.

Agosto de 2019
Miguel Boieiro

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