Espaço Associados



      


Rómulo de Carvalho e António Gedeão - Cumplicidades


por Regina Gouveia





No próximo dia 19 de Fevereiro passarão vinte anos sobre a morte de Rómulo de Carvalho. Mas a sua presença mantém-se bem viva, nomeadamente através do seu “duplo” António Gedeão.

Conheci ambos quer direta quer indiretamente. O que quero eu dizer com isto?

Em 1960 entrei para a alínea f (área de ciências) do 6º ano (equivalente ao atual 10ºano), no Liceu Nacional de Bragança. O autor do Guia de trabalhos práticos de Química era Rómulo de Carvalho.



O nome não me dizia nada em especial. Já o livro, esse disse-me bastante, a ponto de ter conservado até hoje e o ter utilizado muitas vezes, já como professora de Física e Química.

Em 1962, já estudante universitária na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, na montra de uma livraria chamou-me a atenção a capa de um pequeno livro: História do átomo, autor Rómulo de Carvalho (RC)



De imediato associei o autor ao mesmo do Guia de Trabalhos Práticos. Comprei-o e achei-o de tal modo interessante que fui comprando outros da coleção. Na altura não devo ter reparado que alguns eram ilustrados por António Gedeão.

O nome António Gedeão( AG) só me despertaria a atenção quando, em 1964, num número da revista o Tempo e o Modo, encontrei o poema Impressão Digital, que achei belíssimo.

Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D.Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.




Tentei, de imediato, saber onde poderia encontrar mais poemas do autor e adquiri o livro Poesias Completas que na 1ª edição, em 1964, reuniu os poemas de Movimento perpétuo, Teatro do Mundo, Máquina de Fogo. Em 1968, a 2ª edição incluiu ainda Linhas de Força e o Poema para Galileu.

Quando em 1966 comecei a lecionar como professora de Física e Química, encontrei numa livraria Física para o povo que adquiri. Voltarei a falar deste livro.



Em 1969 conheci pessoalmente Rómulo de Carvalho. Fazia parte do júri do meu exame de estado (exame após dois anos de estágio, obrigatório para quem quisesse seguir a carreira docente), embora não tivesse sido ele o arguente. Durante o estágio, tive o primeiro contacto com a Gazeta de Física, que passei a assinar, e à qual Rómulo de Carvalho esteve ligado desde a sua origem.


A partir de 1972 passei a orientar estágio e, nessa condição, tive várias reuniões em que Rómulo de Carvalho estava presente, na qualidade de metodólogo itinerante, que juntamente com alguns colegas (creio que seis), supervisionava, a nível nacional, a formação de professores de Física e Química,.

Regresso ao livro Física para o Povo.

Este livro é para si, meu amigo. Foi escrito a pensar em todas aquelas pessoas que gostariam de estudar e de aprender mas que não tiveram ocasião para isso….Pus-me assim a pensar sobre várias coisas que o meu amigo poderá ter observado na sua vida diária e que talvez gostasse de saber explicar….Não mostre este livro a nenhuma pessoa sabedora porque essa encontraria com certeza muitos motivos de censura nas minhas palavras. Acharia que aqui não estava bem explicado, que ali tinha usado palavras impróprias….E tinha razão. Mas não se preocupe com isso. Isto é só para o meu amigo….

Nesta introdução emerge um profundo gosto pela ciência que quer partilhar com aqueles que não tiveram oportunidade de estudar. Sabe que essa partilha vai implicar uma escrita eventualmente menos rigorosa no que respeita à divulgação científica, o que poderá será alvo de crítica mas, num gesto muito generoso, assume essa situação.

Este livro, que tinha dois volumes, foi reeditado em 1996 com o título Física na Dia a dia. O prefácio é de Mariano Gago, que foi seu aluno e que nos diz:

Rómulo de Carvalho aprendeu de Gedeão o gosto pelos objectos simples, pela história singelamente contada, pela experiência quotidiana. Quanto a Gedeão, penso nele como companheiro de carteira de Rómulo na aprendizagem interior do espírito da Física, cedo feita de ensinar os outros

Lição sobre a água

Este líquido é água.
Quando pura é inodora,
insípida, incolor.
Reduzida a vapor, sob tensão
e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas
que, por isso,
se denominam máquinas a vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções
mas de um modo geral
dissolve tudo bem,
ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100,
quando à pressão normal.
Foi neste líquido
que numa noite cálida de Verão
sob um luar gomoso
e brando de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

Neste poema, como em muitos outros, emerge esse gosto pelos objetos simples, pela história singelamente contada, pela experiência quotidiana….

Para além disso, numa visão transdisciplinar, vai buscar o Hamlet de Shakespeare … O poeta, o professor, o divulgador. numa simbiose total….

Máquina do Mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio em suma.
O resto é a matéria.
Daí que este arrepio
Este chamá-lo e tê- lo, erguê-lo e defrontá- lo,
Esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo.

Aqui, numa belíssima lição sobre a descontinuidade da matéria emerge novamente, através do poeta Gedeão, o professor/divulgador, Rómulo de Carvalho.
Tendo em conta todas estas vertentes, é óbvio que RC/AG iriam acompanhar todo o desenvolvimento da ciência. A ida do Homem à Lua, que que mereceu referência especial em Pedra Filosofal, talvez o poema mais conhecido de AG, mereceu, por si só, um poema.

Poema do Homem Novo

Neil Armstrong pôs os pés na Lua
e a Humanidade saudou nele
o Homem Novo.
No calendário da História sublinhou-se
com espesso traço o memorável feito.
Tudo nele era novo.
Vestia quinze fatos sobrepostos.
Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo,
um colante poroso de rede tricotada
para ventilação e temperatura próprias.
Logo após, outros fatos, e outros e mais outros,
catorze, no total, de película de nylon e borracha sintética.
Envolvendo o conjunto, do tronco até aos pés,
na cabeça e nos braços,
confusíssima trama de canais
para circulação dos fluidos necessários,
da água e do oxigénio.
A cobrir tudo, enfim, como um balão ao vento,
um envólucro soprado de tela de alumínio.
Capacete de rosca, de especial fibra de vidro,
auscultadores e microfones,
e, nas mãos penduradas, tentáculos programados,
luvas com luz nos dedos.
Numa cama de rede, pendurada
da parede do módulo,
na majestade augusta do silêncio, dormia o Homem Novo a caminho da Lua.
Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso,
bocas de espanto e olhos de humidade,
todos se interpelavam e falavam,
do Homem Novo,
do Homem Novo,
do Homem Novo.
Sobre a Lua, Armstrong pôs finalmente os pés.
Caminhava hesitante e cauteloso,
pé aqui, pé ali, as pernas afastadas,
os braços insuflados como balões pneumáticos,
o tronco debruçado sobre o solo.
Lá vai ele.
Lá vai o Homem Novo
medindo e calculando cada passo,
puxando pelo corpo como bloco emperrado.
Mais um passo.
Mais outro.
Num sobre-humano esforço
levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela.
Com redobrado alento avança mais um passo,
e a Humanidade inteira,
com o coração pequeno e ressequido,
viu, com os olhos que a terra há-de comer,
o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua,
a bandeira da sua Pátria,
exactamente como faria o Homem Velho.

Rómulo de Carvalho foi também historiador . Rogério Fernandes in http://purl.pt/12157/1/estudos/romulo-carvalho-historiador.html diz :

A sua obra como historiador da Ciência e historiador da Educação em Portugal é talvez a mais importante de quantas se produziram no nosso país. No campo da História da Educação a sua publicação principal é a História do Ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade até o fim do regime de Salazar-Caetano, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian na sua prestigiosa colecção «Manuais Universitários» (Lisboa, 1986).

E nessa vertente de historiador não se pode deixar de referir As Origens de Portugal-História Contada a Uma Criança, escrito para o filho, quando criança.

Sabes o que são poetas? São os homens que fazem versos. Quando os versos são bonitos e soam bem aos ouvidos é muito agradável lê-los. Muitas pessoas aborrecidas ficam bem dispostas quando lêem versos. Por isso ser grande poeta é tão útil como ser grande médico ou ser grande engenheiro.

Carvalho, R. In “As origens de Portugal. História contada a uma criança”.

Para além das vertentes poeta, professor, divulgador, historiador, há as de construtor de equipamento didático, que concebe, fotógrafo, ensaísta, autor de ficção e teatro , formador. Esta última é testemunhada por professores que ajudou a formar.

O objetivo prioritário (…) era sensibilizar-nos para os problemas da atividade ensino-aprendizagem, sem nos impor um “modelo” definitivo de professor. Toda a sua atuação tinha por fim incentivar-nos para a descoberta e desenvolvimento de potencialidades que nos permitissem criar o nosso modelo pessoal de professor, adaptável em cada momento à realidade aluno-escola…

(depoimentos de Alcina do Aido e Maria Gertrudes Bastos in Pessoa. C (2001), Pedra Filosofal, Gazeta de Física, Fascículo 2, Julho de 2001)

Na sua obra emerge também o humanista como por exemplo em Lágrima de Preta, Calçada de Carriche e tantos, tantos outros poemas. Mas, para mim, é em Poema para Galileu que todas vertentes melhor se entrelaçam.

Poema para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.Disse Galeria dos Ofícios).
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria… Eu sei... Eu sei...As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!Olha. Sabes?
Lá em Florençaestá guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileu,a inteligência das coisas que me deste.
Eu, e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileu!- e jurava a pés juntos
e apostava a cabeça sem a menor hesitação
-que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez
que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileu,daquela cena
em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente
um guiso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,que parecia impossível
que um homem da tua idade e da tua condição, se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade e para a civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturase poisaram, como aves aturdidas
- parece-me que estou a vê-las -, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor,
que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento,
livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileu!Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileu Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso, estoicamente, mansamente,resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles,
do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo,
caindo sempre,e sempre, ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

Em 1964 Jorge de Sena no prefácio de Poesias Completas escreve, referindo-se a António Gedeão:

(….)Ali estava um poeta novo e diferente …..

Pessoalmente, considero que esse poeta novo e diferente surge das cumplicidades entre RC e AG. Qual deles (Rómulo ou Gedeão) poderemos responsabilizar por estar sempre atento a uma evolução pluridimensional do mundo que disseca e /ou denuncia? A resposta só poderá ser: ambos.

Gedeão não existiria sem Rómulo e Rómulo seria inevitavelmente um outro, sem Gedeão.


2017-01- 11

Regina Gouveia

Araújo. J.M.(2006), Rómulo de Carvalho na Universidade do Porto, Editora da Universidade do Porto
Carvalho, R. (1955),A História do átomo, Atlântida Editora
Carvalho, R. (1995),A Física no dia a dia, Relógio de água Carvalho, R. (1995)
Carvalho, R. (1998), As origens de Portugal: história contada a uma criança.
Crato, N.(org), Rómulo de Carvalho. Ser Professor, Gradiva
Gedeão, A. (2004), Obra Completa, Relógio D´Água







LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS