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20º Congresso de Esperanto da Andaluzia


por Miguel Boieiro



Por Terras do Califado

A crença no idioma do futuro, veículo de intercomunicabilidade fácil, franco e honesto para todas as nações do mundo, levou-nos, desta feita, a Antequera, onde se realizou, de 29/10 a 1/11/2016, o 20º Congresso de Esperanto da Andaluzia. Éramos quatro portugueses: a Alexandrina, a Manuela, o Rui e este escriba, entre cerca de 70 participantes. Como é óbvio, a maioria era de espanhóis, melhor dizendo, andaluzes, mas havia também gente de França, Bélgica, Holanda, Suécia e Itália. Foi uma excelente oportunidade para praticarmos a língua internacional e, para aqueles que têm o ouvido apurado, o dialeto andaluz.

Juntando o útil ao agradável, deambulámos antes alguns dias por Torre de Molinos e por Granada.

Torre de Molinos

Agradavelmente, o verão ancorava ainda nesta famosa estância turística, não obstante estarmos nos finais de outubro. A água do mar estava tépida com 20 ou 21 graus, o que permitiu algumas revigorantes banhocas. Aproveitámos para apreciar a estética urbanística desta cidade toda virada para o turismo balnear, com espaços verdes muito bem cuidados e ruas asseadíssimas. Nos numerosos "chiringuitos" (restaurantes da marginal), servida por tranquilos percursos pedonais, os menus privilegiavam os "pescaitos" (fritadas de pequenos peixes). Realce para o almoço de aniversário da Alexandrina, nos "Leones", o qual ostentava um cartaz mencionando a classificação de melhor "espetador" (peixe assado no espeto) da Costa do Sol. De resto, havia restaurantes de comida holandesa, inglesa, francesa, americana, marroquina, mexicana ... de comida portuguesa, nada vislumbrámos. Aliás, é curioso como aqui tão perto da fronteira lusa o nosso país é tão pouco notado. Ninguém sabia, por exemplo, que António Guterres tinha sido eleito Secretário-geral das Nações Unidas. Em contrapartida, aparecia quase sempre o Cristiano Ronaldo nas primeiras páginas dos jornais e não apenas no que respeitava a assuntos futebolísticos.

No jornal local denominado "Vivatorremolinos", com 80% de anúncios e fofoquices cor-de-rosa, lográmos encontrar dois bons artigos "El gran mar que desapareció", referindo-se ao lago Aral da antiga URSS, que abrangia uma superfície de 68 mil quilómetros quadrados. O outro artigo de opinião focava a necessidade de "un espírito nuevo ante una nueva realidade" face às crises da evolução humana. A frase-chave a reter era: "Fríamente ya estamos conectados com la tecnologia, ahora falta copularmos interiormente com el fuego del afecto".

Também nos chegou às mãos o "Euroweekly", semanário de língua inglesa, que tinha o incrível número de 144 páginas.

Passados dois dias, despedimo-nos do Hotel Arcos de Montemar onde nos trataram com inexcedível simpatia e rumámos a Granada.

Granada

Granada é uma cidade maravilhosa, mas ainda mais maravilhosos foram os "granaínos" que nos acolheram e mimaram durante dois intensos dias.

Uma breve nota para referir que "granadinos" seria a palavra mais entendível, mas como andaluzes que se prezam, eles comem algumas letras para que o falar seja ainda mais rápido e difícil para nós, acrescentamos. Aqui comeram o "d". Em "España" comem o "s" e - fica "Epaña". Dizia-me uma participante de Valladolid: - Eu também tenho dificuldade em entendê-los!

Ficámos hospedados na casa de Eva Velásquez, amiga do Rui em várias andanças poéticas e teatrais. Evita pôs todo o seu apartamento à nossa disposição para estarmos mais à vontade e foi dormir a casa da mãe, que se encontrava doente. Depois foi o reencontro de vários amigos e amigas, todos artistas, que nos mostraram o que de mais típico tem a cidade. Ceámos em adegas e "bodegas", provando variados "bocadillos" e "tapas". Igualmente provámos as doçarias granadinas de influência mourisca (os pasteis morunas e outras). Aliás, nalgumas ruas estreitas do casco histórico com as suas lojecas, temos a sensação de que estamos em Marrocos, tal a especificidade dos artigos expostos.

Fomos recebidos principescamente no restaurante Boabdil, na rua Elvira. A jovem proprietária, Carolina Murcia, também atriz e amiga do Rui, e o irmão António, foram colocando em cima da mesa sucessivos petiscos e bebidas (e no fim não nos cobraram nada). Ao citado restaurante chegaram depois o poeta Pedro Enriquez e Elisa e também Sara Sae e German. Com eles convivemos demoradamente. Sara, através da sua voz melodiosa, brindou-nos com algumas canções tradicionais e de poemas de Garcia Lorca.

Uma nota mais para mencionar que Boabdil era o nome do último rei mouro de Granada que, ao render-se, entregou as chaves do castelo ao rei Fernando de Aragão. Por cortesia do rei católico foi dispensado de desmontar do seu cavalo. Este episódio foi considerado um ato de grande dignidade e nobreza.

Guiados por Eva, estivemos toda a manhã no Alhambra que se achava pejado de turistas embora fosse um dia corriqueiro de semana. Impossível será descrever tudo o que vimos e sentimos. Apesar das modificações arquitetónicas introduzidas pelos cristãos, a presença cultural moura (neste caso não me inclino a usar o termo árabe) mantém-se com fulgor. Na retina ficou-nos a entrada do Palácio de Carlos V com várias colunas cuja pedra nos fez lembrar a nossa "brecha da Arrábida".

Antequera

A primeira visão que temos desta cidade é um rochedo enorme a destacar-se da planície, que os locais chamam penha dos enamorados. Prefiro o termo esperantista: stonego de la geamantoj. É um sítio mítico e místico carregado de lendas que vêm do longínquo neolítico.

A cidade ostenta um notável protagonismo histórico: casas senhoriais com os respetivos brasões, opulentas igrejas de estilo rococó (em algumas é preciso introduzir um euro para acionar a iluminação), a Colegiata lá no alto e, logo em baixo, o que resta das termas romanas que se mantiveram ativas do século I ao século V e que os cristãos, sempre codiciosos, apelidaram posteriormente de Santa Maria. Constituíam um complexo bem organizado com Frigidarium (banhos de água fria), Tepidarium (banhos de água temperada), Caldarium (banhos de água quente), Latrinae (latrinas), Apoayterium (vestiário) e Natatio (piscina ao ar livre). A paixão pelo esperanto não impede, antes pelo contrário, que se aproveite para ficar com umas luzes de latim.

EL Torcal

O programa do congresso incluía uma visita a este parque natural, caracterizado por um relevo cársico espetacular. A natureza criou, há 250 milhões de anos, um conjunto de estruturas de calcário poroso com curiosas configurações, formando grutas, galerias e vales numa área de cerca de 12 km2 de extensão – a maior da Europa Ocidental. No passado mês de julho de 2016, o parque foi justamente classificado pela UNESCO, património da humanidade.

O grupo teve a oportunidade de efetuar um percurso circular de cerca de dois quilómetros e de subir ao miradouro de "las Ventanillas" onde se divisa um soberbo panorama. Não foi fácil o passeio pois, por um lado, queríamos admirar a paisagem circundante e, por outro, tínhamos de olhar para baixo para não esbarrarmos nas rochas eriçadas que brotavam do solo.

Depois de uma interessante palestra efetuada no auditório do Centro de Visitantes, cujo título em português seria, mais ou menos, "Curiosidades do céu observadas a olho nu", pelo reputado astrónomo David Enríquez, houve um belo jantar em comum no restaurante do Centro. Entretanto, fez-se noite. Uma noite de breu, diga-se de passagem. Enregelados, lá seguimos as explicações do diretor do Observatório Astronómico. Através de computador e telescópio ficámos mais familiarizados com as Ursas Maior e Menor, a Estrela Polar, a Via Látea, a Centopeia e outras constelações, afinal aqui tão perto, a míseros escassos milhões de anos-luz. Até observámos Marte, mas a Lua, nem vê-la!

Dólmens

Não é só o Torcal que atrai turistas a Antequera. Eles vêm também em grande número para visitar os três dólmens, curiosas estruturas pré-históricas que se situam praticamente dentro da cidade. Dólmens, cromeleques e menhires são considerados os mais antigos monumentos da Humanidade e encontram-se espalhados por todo o mundo. Só na Coreia existem para cima de 30 mil dólmens. Mas os dólmens de Antequera primam pela originalidade. O recinto está todo vedado, havendo apenas um portão de entrada que nos conduz ao Centro de Acolhimento. Aí há uma loja museológica e um sistema audiovisual que nos permite entender a técnica e a filosofia dos homens primitivos. Entramos a seguir no dólmen de Viera que tem um comprido corredor com mais de 20 metros, cujas paredes são formadas por pesadas lajes e cobertas igualmente por grandes pedras lisas. A técnica utilizada dá pelo nome de ortostática. O corredor vai afundando até terminar numa sala quadrada onde seria o sepulcro.

Fomos depois ao dólmen de Menga que ainda é mais interessante. Para além do corredor de 27,5 metros, há no seu interior três lajes verticais que estabelecem dois percursos. Na câmara final vê-se um poço escavado na rocha com quase 20 metros de profundidade.

Qualquer descrição que se faça destes sepulcros megalíticos ficará sempre incompleta e só uma visita com explicação "in loco" permitirá aos leitores aquilatar de todos os detalhes destes fantásticos sítios arqueológicos. Falta ainda acrescentar que no espaço circundante foram colocados dois relógios solares que permitem ao visitante ficar com uma noção das orientações ditadas pelo astro-rei.

Museu do Azeite da DCOOP

Um dos lagares de azeite com o respetivo museu da empresa Dcoop encontra-se a escassos quilómetros da cidade de Antequera. Assinale-se que esta empresa, formada por mais de cem cooperativas de produtores de azeitona, é a maior companhia azeiteira mundial.

Fomos recebidos no museu por uma simpática cicerone que, com muitos pormenores, talvez demasiados para leigos como nós, explicou todo o processo de preparação da azeitona de mesa e as características dos vários azeites. Foi manifestamente impossível fixar tudo o que disse, mas ficámos com uma ideia mais exata da importância da empresa e do poderio da Espanha como principal produtora mundial.

Depois do percurso pelas salas do museu, recheadas de instrumentos e apetrechos desde o período romano até aos nossos dias, tivemos ocasião de molhar o pão em vários tipos de azeite colocados em pires à nossa inteira disposição. A visita terminou na loja, onde alguns participantes fizeram as suas compras. Recolhemos algumas revistas trimestrais da Dcoop e através de uma delas, ficámos a saber que na Andaluzia se prevê, este ano, uma produção de 1030 000 toneladas de azeite. É obra!

A Flora

A viagem não proporcionou muitas hipóteses de analisar a vegetação endémica da região. Em Torre de Molinos destaca-se a grande variedade de palmeiras, ficus (algumas de grande porte) e outras árvores mais próprias das zonas tropicais do que das terras mediterrânicas. As palmeiras canarensis encontram-se totalmente eliminadas da paisagem por causa do terrível escaravelho que grassou por todo o lado. Verificámos que foram, em grande parte, substituídas por tamareiras. No largo fronteiro ao Museu de Antequera há duas tamareiras altíssimas carregadas de frutos já quase maduros. Provámos uma tâmara que se tinha desprendido. Já possuía doçura mas ainda estava muito adstringente.

Em Granada visitámos o Jardim Botânico Histórico da Universidade, mas nada observámos de muito relevante para além duma gigantesca Cupressus sempervirens, uma razoável Ginkgo biloba, uma Sophora japonica e várias Betulaceae. Provavelmente o tempo foi curto para descortinarmos mais curiosidades. Registe-se que o Jardim está um pouco abandonado, em contraste com o arvoredo que ladeia as ruas e as praças da cidade, o qual se encontra esmeradamente cuidado. Na Livraria Universitária adquiri "Plantas Aromáticas y Medicinales del Entorno Granadino" de Gabriel Osorio Pérez que aborda 125 fichas de plantas com boas fotografias e algumas curiosidades relacionadas com a Serra Nevada.

Numa ervanária do centro histórico bem abastecida de "chás", adquiriu-se "pau-doce", ou seja regaliz ou alcaçuz, um pouco difícil de adquirir no nosso País. No Torcal, reparámos na grande quantidade de arbustos que ladeavam as veredas, em especial, o espinheiro-alvar (Crataegus monogyna), mas também a roseira canina, o carrasco de folha larga, a palmeira-anã, o acer, a silva, ainda com amoras. De configuração arbórea aparece uma espécie endémica protegida que é o Acer monspessulanum, de interesse científico. Foi pena não estarmos na primavera pois a estrutura do solo deve ser propícia ao aparecimento de orquidáceas.

Nos arredores das grandes cidades veem-se muitas estufas que devem abrigar fruteiras tropicais (bananeiras, anoneiras, mangueiras, abacateiros, ...).

Nos campos, o que salta à vista são os extensos olivais e vinhedos. Nas previsões do Anuário Mundial do Vinho que me chegou às mãos, estima-se que a Espanha atinja uma produção de 37,2 milhões de hectolitros, enquanto Portugal aparece com 6,7 milhões, o que já não é nada mau, tendo em conta a proporcionalidade dos respetivos territórios! Por curiosidade, anote-se que o total mundial referente a 2015 é de 274,4 milhões de hectolitros.

O Congresso

Ficou para o fim o motivo principal desta nossa viagem por terras onde a moirama mandava há quinhentos anos.

O lema deste importante encontro de esperantistas foi, significativamente: O Esperanto e a Natureza: o Céu e a Terra.

Há que dizer, pelas razões acima expostas, que Antequera foi muito bem escolhida para a realização do 20º Congresso de Esperanto da Andaluzia.

A sessão inaugural dirigida por Ángel Arquillos, digníssimo presidente da Andaluzia Esperanto-Unuigo e a palestra proferida por Ricardo Reyna "Cu nova lingva politiko en Europo post la briteliro" que se poderá traduzir por: "Que nova política para a Europa após a saída do Reino Unido", decorreram no auditório do Museu de Antequera.

Na Biblioteca da cidade procedeu-se ao descerramento de uma placa de homenagem ao ilustre esperantista Higino Gómez-Quintero, nascido em Antequera em 1939 e falecido em 2010 no Canadá, onde foi professor de filosofia e filologia desde 1963.

Depois, já na Casa da Cultura, situada a dois passos do Hotel Colón, onde estávamos hospedados, decorreram os restantes trabalhos.

A jovem Fátima Jiménez Garcia, de Málaga, graduada em Interlinguística e Esperantologia pela Universidade de Poznan (Polónia), maravilhou os assistentes com a sua expressiva conferência: "Dólmens: primeiros monumentos cerimoniais da Humanidade" e especialmente com as duas sessões interativas sobre micro literatura, incluindo micro novelas e "hajkoj" (pequenos poemas japoneses).

A belga Heidi Goes, expressamente convidada para o congresso, contou as suas experiências sobre o ensino do Esperanto em Timor-Leste, e apresentou projeções sobre a natureza em Angola e Timor-Leste e sobre o projeto agrícola denominado "Arbar-gardenado" (Prática de jardinagem na floresta).

Realce ainda para o escritor malaguenho Leonardo Cerveira Navas que pediu a colaboração dos participantes para o livro que irá elaborar: "O Esperantista". Várias pessoas deram sugestões e contaram episódios ocorridos durante a guerra civil espanhola em que os esperantistas foram perseguidos e alguns mesmo assassinados por defenderem valores humanitários.

Por fim, em alegre convívio, procedeu-se à Sessão de Encerramento presidida por Ángel Arquillos.

Por tudo o que se descreveu e pelo muito do que foi vivido e sentido e que não será prático contar, para não esgotar a paciência dos leitores, visto que a presente croniqueta já vai longa, afirmamos que foi um privilégio poder participar nesta viagem cultural às terras do antigo califado, ligando o passado ao presente e ao futuro com a protagonização do Esperanto como idioma de paz, amizade e cultura.

8 de novembro de 2016

Miguel Boieiro







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