por
Mário Vale Lima
Na obra prima da literatura Cem anos de solidão o autor descreve uma estranha epidemia que assolou Macondo em que, um a um, os habitantes eram acometidos de um estranho mal que lhes causava amnésia, primeiro dos nomes das coisas, depois da sua utilidade, atingindo, por fim, toda a vida cognitiva. Os que se mantinham ilesos antecipavam-se ao esquecimento escrevendo nas próprias coisas o respectivo nome e utilidade: no flanco das vacas "Esta é a vaca/ Serve para dar leite/ O leite tem de ser fervido"; em papelinhos enrolados "Esconderijo do dinheiro e do ouro"; em tarjas, às entradas do povoado "Deus existe".
A doença em causa - a Demência - é causada pela progressiva degenerescência dos neurónios cerebrais com destruição das zonas do córtex onde decorre o processamento da memória, sendo que a descrita pelo psiquiatra A. Alzheimer em 1906 representa 60% de todas as demências na população europeia. Inicia-se ao redor dos 65 anos, com o défice da memória e da concentração, progride com confusão no reconhecimento de terceiros e de si próprio e com desorientação no espaço e no tempo; mais tarde surge a incontinência urinária e, por vezes, a desregulação térmica (sensação de frio no verão e vice-versa). Atingido por este quadro de sintomas o doente vê-se, em breve, afastado do seu meio social.
O temor "do Alzheimer" perante um vulgar episódio de amnésia é hoje uma frequente queixa, mais comum nas mulheres, já que é delas o penoso encargo de cuidar desta doença cuja prevalência em Portugal é de 182.526 casos (62.260 homens e 120.266 mulheres) segundo dados de 2012 e que se acentuará à medida que aumenta a esperança de vida.
Inúmeras figuras mediáticas e celebridades sofreram da doença de Alzheimer. Algumas histórias causam mais comiseração por representarem o abismal reverso do poder e da glória. Ronald Reagen, estrela do cinema e depois presidente dos EUA nos anos 80 do séc. passado, iniciou os sintomas da demência aos 83 anos. É pungente a descrição das manifestações da doença feita pela Srª Nancy Reagan. Flutuando na solidão do universo, Reagan olhava-a como a um estranho e, repetitivo, perguntava «Quem és tu?», enquanto os demais sintomas avançavam até à morte que, por cínica evolução do quadro, como amiúde acontece, ocorreu tardiamente. O mais comovente caso, porém, é o de Robert MacNamara secretário de Estado da Defesa dos EUA nos anos 60 do séc. XX e artífice da guerra do Vietname que iniciou aos 75 anos as primeiras manifestações de demência. Aquele que foi o mais poderoso habitante do planeta e que a televisão da época mostrava na sua apresentação impoluta, transformou-se, aos poucos, num andrajoso de gabardine e sapatilhas, tresandando a urina, durante anos a vaguear, perdido e ignorado, pelas ruas de Washington, até morrer em 2009.
Embora os avanços na investigação tenham esclarecido alguns mecanismos da degenerescência cerebral, os fármacos existentes são inoperantes na cura e restam sérias dúvidas quanto à capacidade de travar a evolução da doença.
A Segurança Social tem dedicado reduzido apoio a tão perturbador e crescente problema, embora assegure, especificamente, alguns benefícios (caso do Complemento por Dependência, cf. portaria 584/2004 de 28 de Maio).
Têm surgido, suportadas por parceiros institucionais e locais e por voluntários, iniciativas do maior alcance como as da Associação Alzheimer Portugal com os seus Cafés Memória - o ponto de encontro para pessoas com problemas de memória e seus familiares (www.cafememoria.pt), a funcionar já em 9 locais do país e em expansão, "contribuindo para melhoria da qualidade de vida e redução do isolamento social" dos doentes, familiares e cuidadores, tão penalizados pela servidão à doença.
Lidar nas 24 horas com quem, depois de uma vida em comum, foi atingido pela demência, constitui uma experiência emocional inimaginável que, não raro, acaba com o cuidador (quase sempre o cônjuge, a filha ou a nora) num estado de depressão severa causada pela contemplação pesarosa do fenecer da mente, esse halo de transcendência que se vai apagando até à desolação das ruínas - alegoria da redentora compaixão dos humanos frente aos indecifráveis castigos de Deus.
MárioValeLima
Médico
mvalelima@gmail.com
Setembro 2015
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