por Adão Cruz
Tive o prazer de ler no nortemédico um artigo do Prof. Daniel Serrão intitulado “A morte do corpo”. “O corpo morto”. Não sou um investigador nem um homem das Neurociências, mas tenho muitos anos de vida, durante a qual li muito e muito reflecti sobre o ser humano. Penso que a minha autoridade de veterano da vida me permite dizer que o artigo tem partes muito interessantes que muito me agradam e com as quais concordo, e tem outras de que, pessoalmente, discordo.
Concordo, logo à cabeça do texto, com a síntese da sua reflexão: “Com a morte de cada homem termina um universo cultural específico, mais ou menos rico mas sempre original e irrepetível. O que um homem deixa quando morre – os seus escritos, os objectos culturais que criou, a memória, naqueles que com ele conviveram, da sua palavra, dos seus gestos ou do seu sorriso, os filhos que gerou…-tudo exprime uma realidade que está para além do corpo físico; de um certo corpo físico que esse homem usou para viver o seu limitado tempo pessoal de ser homem.”
Está muito bem descrita e desenvolvida a procura pelo autor, nas autópsias, não só da causa da morte, mas da descoberta da vida “vivida” nesse corpo, numa perspicaz extrapolação através da análise dos diferentes órgãos, assim como a confissão, da qual partilho, de o autor não ter nenhum culto em relação ao corpo morto. Considera inclusivamente as pompas fúnebres inúteis, e os mausoléus ridículos.
A minha discordância começa numa concordância, quando diz que o corpo material acaba com a morte. O corpo, vivo ou morto, no meu entender, é sempre material. Ao referir-se ao corpo material e não apenas ao corpo, deixa no ar a ideia de que haverá outro “corpo”. Se este outro corpo se refere ao que está no início do texto, ou ao que se intui quando diz que Ramalho Ortigão não está no cemitério da Lapa mas nas suas obras publicadas, perfeitamente de acordo.
Como homem de pensamento materialista e sem qualquer tipo de angústia metafísica, a minha sensação de arrepio começa quando diz que acredita na imortalidade do espírito e numa outra forma de vida onde não haverá corpo, nem espaço, nem qualquer matéria, nem tempo. O Prof. Daniel Serrão tem todo o legítimo direito de ter as crenças que entender, mas não é fácil compreender essa posição num homem tão profundamente embrenhado na investigação e na ciência. Claro que, um pouco mais à frente, mostra dúvidas, como é compreensível, quando diz que “se essa forma de vida não existir…”.
Mas detenhamo-nos um pouco na sua crença da imortalidade do espírito, já vislumbrada atrás, quando refere, de uma forma ambígua, a incorruptibilidade do corpo de Santa Paula Frassinetti, deixando descair a razão para onde ela é menos precisa. Com efeito, ela, a razão, seria muito mais útil colaborando na investigação do fenómeno natural, ainda que a explicação não seja fácil, do que na subtil criação de uma atmosfera de sobrenaturalidade que apenas perturba as pessoas mais crentes e mais frágeis.
Apenas como parêntesis, e dada a afinidade do assunto, antes de reflectirmos um pouco sobre a mortalidade ou imortalidade do espírito, lembramos o recente livro do Dr. Luis Portela, “Ser Espiritual: da Evidência à Ciência”, sobre o qual a Ordem dos Médicos promoveu um debate. Embora contendo muitas descrições e intervenções valiosas e credíveis, tanto o debate como o livro, parecem-me, contudo, trazer mais confusão do que esclarecimento, no que respeita a esta complexa área da mente e ao denominado mundo espiritual.
Falar da dimensão espiritual do homem enquanto parte de uma visão não compartimentada do ser humano é, a meu ver, positivo, como já o foi no pensamento de Espinosa. Todavia, não entendo a afirmação de que se formos só pelo conhecimento científico e pela razão perderemos muita coisa. Como se o conhecimento científico e a razão não estivessem eivados de sentimentos, harmonia, consciência, sensibilidade, intuição e humanidade e não tivessem sempre presente a “sabedoria da incerteza” e a certeza de que pode e deve existir muito mais do que aquilo que sabemos. O dizer que “aquilo que se chama crença poderá ser procurado pela ciência mas escapará sempre”, ou dizer que “para além do visível simples estará o invisível complexo”, são boas credenciais para a ciência, a qual, por natureza, é necessariamente prudente e nada tem de arrogante. Finalmente, não entendo como pode ser sustentada a afirmação de que o Homem é uma alma revestida de um corpo e não um corpo animado por uma alma, quando, para mim, sendo a mesma coisa, não é uma coisa nem outra. E muito menos acredito que cada um de nós seja uma minúscula partícula de Deus, como aí se diz.
As coisas complexas tornam-se tanto mais complexas quanto mais nos afastamos da razão, isto é, quanto mais rejeitamos enveredar pelos difíceis mas promissores caminhos da simplicidade.
Em termos universais, o homem não é praticamente nada. Uma ínfima partícula como a mais pequena centelha de uma estrela ou um grão de poeira. Por que razão alcandorá-lo a um qualquer altar ou elevá-lo até aos umbrais do divino? Em termos universais, o homem não é, rigorosamente, o centro de nada nem o fulcro do que quer que seja. Em termos de animal terráqueo, o Prof. Sobrinho Simões, numa recente palestra, convenceu-nos de que as semelhanças entre o homem e os diferentes animais, mesmo os mais primitivos e até as plantas são muito mais importantes e profundas do que as diferenças. Daqui eu pensar que não há nenhuma cultura sólida, seja em que campo for, se não contiver dentro de si um razoável conhecimento da Ciência e da Evidência da Evolução. Apesar de o homem fazer aviões e computadores e ter um pensamento muito mais elaborado, mercê de uma Evolução que se deu no sentido do desenvolvimento de um maior volume cerebral, isto não lhe dá, nem de longe nem de perto, o estatuto de parte integrante da sobrenaturalidade, da divindade ou de uma especial relação com o mistério do Universo, diferente do estatuto dos outros animais, dos outros seres e de todas as coisas que nos rodeiam.
O indivíduo materialista, no sentido filosófico e científico do termo, é aquela pessoa que acredita no ser humano como um todo, um todo indivisível, indissociável, uma única substância como dizia Espinosa. Aquela pessoa para quem não há qualquer fronteira entre a pele e a carne, entre a carne e o sangue, entre o sangue e o cérebro, entre o cérebro e a mente, entre a mente e o pensamento, do qual decorre toda a vida dita psíquica do indivíduo. O pensador materialista baseia os seus conceitos numa intuição natural, numa investigação científica permanente, progressiva, dia a dia mais convincente, e, a não muito longo prazo, pensa ele, acabando por atingir verdades irrefutáveis.
Assim como o aparelho circulatório se encarrega de toda a distribuição de fluidos no organismo, assim como ao aparelho respiratório cabe toda a oxigenação dos tecidos, assim como ao sistema endócrino pertence todo o complexo mundo hormonal do organismo, assim ao sistema cerebral corresponde toda a vida “psíquica” do ser humano. O cérebro é o receptor e emissor de todos os estímulos, exógenos e endógenos do organismo, o construtor do pensamento e de toda a vida afectiva do ser humano. É ele que, através de tais estímulos cria imagens, das quais decorrem emoções que, por sua vez, geram sentimentos que levam à consciência, à reflexão, à vontade e à decisão.
Para o espiritualista existe um dualismo corpo-espírito. Há duas realidades distintas no todo do ser humano, o corpo e o espírito, ou alma, interligadas em vida mas separadas depois da morte. Logo que a alma se separa do corpo, este vê-se reduzido à sua condição de matéria, logo putrefáctil, o tal “corpo morto”, sem vida, enquanto a alma segue por outros insondáveis caminhos. Enquanto o materialista baseia os seus conceitos nas poderosas investigações científicas, sobretudo na área da Evolução e das Ciências Neurobiológicas, o espiritualista, sem qualquer base racional científica e convincente, baseia os seus conceitos numa crença, legítima, mas apenas uma crença.
A realidade de uma vida psíquica em nada se encontra em contradição com o materialismo. A vida psíquica, entendida como a vida decorrente da actividade cerebral, e, logicamente, de toda a actividade pensante, não contradiz, de modo algum, o pensamento materialista. O termo “psíquico” está de tal modo enraizado na nossa linguagem e na nossa sociedade que não é possível eliminá-lo, nem interessa. Quando um materialista diz, por exemplo, em conversa ou num texto literário, “a alma do poeta ou do pintor”, quer dizer o íntimo, o mais nobre do poeta e do pintor, e não, como é óbvio, se refere à alma do poeta ou do pintor em sentido espiritualista. Quando um materialista diz “ele é um espírito vivo”, logicamente que quer dizer que ele tem uma actividade psíquica intensa, perspicaz e arguta, e, de modo algum, se refere ao imaterial espírito contido no conceito espiritualista.
A vida psíquica, isto é, a actividade cerebral e mental de qualquer ser humano, não pessoalizada, evidentemente, é idêntica, seja no materialista ou seja no espiritualista. Um e outro pensam, raciocinam, amam, choram, riem, fazem poesia, são capazes das mais profundas emoções e dos mais nobres sentimentos. Quantas vezes um materialista tem sentimentos e vivências “espirituais” muito mais profundas e mais nobres do que um espiritualista e vice-versa! A única diferença reside no conceito de “esfera psíquica” de cada um.
Como diz Jean-Pierre Changeux, a fisiologia cerebral começou a enraizar-se de tal modo na biologia molecular, que só assim foi possível começar a relacionar os comportamentos com estados fisiológicos de conjuntos neuronais. Através das novas tecnologias começou-se a perceber que a relação entre a actividade dos conjuntos neuronais do nosso cérebro e os estados psicológicos era um facto dificilmente contestável. Já não estamos no domínio do discurso teórico quando dizemos que as relações das neurociências com a ética, a estética, a moral e a epistemologia, não pertencem ao domínio da filosofia, sem demérito desta, mas sim aos intermináveis horizontes da experimentação e da procura de dados objectivos.
Com a morte, todos os órgãos morrem, incluindo o cérebro e toda a sua imensa e magnífica sabedoria. O “corpo morto” do texto de Daniel Serrão, no meu entender, é mesmo o corpo de um homem definitivamente morto, definitivamente desestruturado como ser humano, devolvendo todos os seus átomos à Mãe Natureza e regressando, como pensa Mark Twain, ao sono e ao silêncio do nada que era antes de nascer.
Termino, lembrando que todo o proselitismo é inaceitável, venha de onde vier. Todavia, penso que não é justo chamar prosélita à magnífica função da ciência, o caminho mais racional do conhecimento para a abertura da mentalidade humana e para a conquista da verdade.
2013-11-12
Adão Cruz
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