Espaço Associados



       Os Poemas da Minha Vida III

António Ruivo Mouzinho
(Associado n.º 6294)


III



Dissemos no JS de 26 Jan.º p.p. que o conhecimento que os Portugueses têm de um dos períodos mais brilhantes da história da poesia nacional é fraco; referimo-nos ao período trovadoresco, na época medieval. À excepção de «Ai eu coitada/como vivo…» de Afonso X, o Sábio (1221- 84), com 3 menções, e de «Ai flores, ai flores do verde piño…» do seu neto D. Dinis (1261-1325), com 2, apenas mais meia-dúzia de cantigas foram mencionadas: uma de amor («Proençaes soem mui bem trobar…»), uma de amigo («Ai madre, moiro d’amor! ») e uma de maldizer ( « Joan Bol’ anda mal desbaratado…»), todas de D. Dinis, outra de maldizer de Airas Peres Vuiturom (« A lealdade à Bezerra pela Beira muito anda! »), outra de amigo de Galisteu Fernandez («Dizen do meu amigo ca mi fez pesar…»), uma marinha de Martim Codax («Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo?») e uma barcarola de João Zorro («En Lixboa, sobre lo mar/ barcas novas mandei lavrar…»), que ainda ecoará, já no nosso tempo, em Fiama, no contexto da guerra colonial, mas ninguém se lembrou da alba de Nuno Fernandes Torneol («Levade, amigo, que dormides as manhanas frias;/ tôdalas aves do mundo d’amor dizian./ Leda m’ando eu ») ou da cantiga de romaria de Pero Viviães («Pois nossas madres vão a San Simon/ de Val’ de Prados candeas queimar/.../queimem candeas por nós e por si/ e nós, meninas, bailaremos ‘í») ou da bailia de Airas Nunes de Santiago («Bailemos nós já todas três, ai amigas,/ so(b) aquestas avelaneiras frolidas…») ou da barcarola de Mendinho («Sedia-m’ eu na ermida de San Simion/ e cercaram-me as ondas que grandes son!…») ou, enfim, da pastorela de João Airas de Santiago («Pelo souto de Crexente,/ ua pastor vi andar,/ muito alongada da gente…»).

E do séc. XIII saltamos para o séc. XV, com a famigerada «Cantiga, partindo-se…» de João Roiz de Castel-Branco. Estes nomes medievais eram, por vezes, uma espécie de bilhete de identidade: João (nome de baptismo) Roiz (abreviatura de Rodrigues, patronímico: filho de Rodrigo) de Castel-Branco (naturalidade). As autoras do dicionário ilustrado «Língua Portuguesa no Mundo» (Porto Editora, 2005), apesar de reconhecerem que «são escassos os dados biográficos conhecidos sobre este poeta palaciano, cuja participação no «Cancioneiro Geral» é quase sempre associada à bela cantiga «Senhora, partem tão tristes…», não hesitaram em fixar a data do nascimento do poeta quatrocentista em 1511 e a da morte em 1568, quando o mesmo dicionário informa que o «Cancioneiro Geral», coligido por Garcia de Resende, foi publicado em 1516. Ora, o professor albicastrense António Salvado, no seu voluminho das «Poesias Completas de João Rodrigues de Castelo Branco» (Ed. Aríon, 2002), esclarece que o poeta «nasceu em Castelo Branco por meados do século XV e nesta então vila faleceu em 1515». Não é este o único dislate do referido Dicionário em 12 vols., pois, por exemplo, Luís Veiga Leitão não nasceu em 1915 mas sim em 1912; Egito Gonçalves não nasceu em 1922 mas sim em 1920; Bernardo Santareno não nasceu em 1924 mas sim em 1920; António Reis não nasceu em 1927 mas sim em 1925; Ruy Cinatti faleceu em 1986 e não em 1978; José Blanc de Portugal faleceu em 1999 e não em 2000. Vem isto a propósito dos «Poemas da Minha Vida», em que, à excepção do General, que alinhou todos os poetas por ordem alfabética, os outros convidados o fizeram por ordem cronológica (alguns aos soluços). Como não acreditamos que todos conhecessem as datas limites da vida dos autores seleccionados, o cuidado da datação deve ser atribuído ao editor. Além de «gralhas» evidentes, como a morte de D. Dinis em 1352 (os dois últimos algarismos estão trocados), também as datas de nascimento de Veiga Leitão ou António Reis estão erradas (ver acima), bem como a da morte de Raul de Carvalho (1984 e não 1986).

A época clássica (sécs. XVI-XVIII) é, naturalmente, dominada pela figura de Camões, com mais de 30 poemas diferentes distinguidos, alguns com 8 menções («Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/…/todo o Mundo é composto de mudança…», soneto que era implacavelmente cortado pela Censura salazarenta sempre que a Imprensa o tentava transcrever), com 7 («Aquela triste e leda madrugada…» e «Descalça vai para a fonte…»), com 6 («Sete anos de pastor Jacob servia...» e «Amor é fogo que arde sem se ver…»), com 5 (« Alma minha gentil, que te partiste…» e «Erros meus, má fortuna, amor ardente…»), com 4 («Aquela cativa, que me tem cativo…»). E, em matéria de excertos d´«Os Lusíadas», vai-se desde um monóstico, como «Esta é a ditosa Pátria minha amada…», ou um dístico («Dizei-lhe que também dos Portugueses/ alguns traidores houve algumas vezes») até a episódios inteiros, como a morte de Inês de Castro ou a fala do Velho do Restelo. Houve mesmo quem citasse como «poema da sua vida» nada mais nada menos que a proposição, invocação e dedicatória a D. Sebastião, o que só mostra que, em termos d’ «Os Lusíadas», nunca passou do começo.

Gil Vicente teve apenas 4 menções, entre as quais o famoso diálogo de Todo-o-Mundo e Ninguém, no «Auto da Lusitânia», e a Súplica da Cananeia, no auto do mesmo nome. Bernardim Ribeiro obteve outras tantas citações, com destaque para a introdução da Écloga II («Dizem que havia um pastor/ antre Tejo e Odiana,/ que era perdido de amor/ per uma moça Joana…»). Sá de Miranda mereceu uma dúzia de transcrições, com especial relevo para a sua Carta a D. João III, na qual avulta a celebérrima quintilha que constitui um verdadeiro auto-retrato: «Homem dum só parecer,/ dum só rosto, ua só fé,/ d’antes quebrar que torcer,/ outra coisa pode ser,/ mas de corte homem não é.», logo seguida do soneto «O sol é grande, caem co’a calma as aves…». O Dr. Ant.º Ferreira teve só duas menções: um excerto do IV acto da tragédia «Castro» e um soneto. Diogo Bernardes outras duas: 2 sonetos, um dos quais falsamente atribuído a Camões, e o seu irmão Frei Agostinho da Cruz também dois sonetos: um consagrado às chagas de Jesus Cristo e outro dedicado a Nossa Sr.ª da Arrábida. Rodrigues Lobo foi mencionado pelo vilancete «Antes que o sol se levante,/ vai Vilante ver seu gado…» e dois sonetos, um dos quais («Formoso Tejo meu, quão diferente…») erradamente assinado por Camões. O P.e António Vieira, surpreendentemente, também surge antologiado com o célebre trecho em prosa «É a guerra aquele monstro…» (enfim, uma vez, no Rio, como alguém houvesse estranhado que Cecília Meireles tivesse chamado Poeta ao grande prosador português Aquilino Ribeiro, a poetisa brasileira explicou que considerava Poeta todo o grande criador literário. Ora, coisa idêntica se passa com Vieira: pelo menos, ritmo não falta ao «imperador da língua portuguesa»). D. Francisco Manuel de Melo é representado por um único soneto (de Consoada a uma sua prima). Correia Garção surge com a infalível «Cantata de Dido», que, como o demonstrou Luísa Dacosta, não é um modelo de estilo clássico mas, sim, uma caricatura do estilo barroco. Filinto Elísio também é representado por um só soneto satírico («Nasci – logo a meus pais custou dinheiro…»). E Bocage é o poeta clássico mais popular depois de Camões, já que conseguiu um total de 16 referências, sendo as mais notórias o soneto «Liberdade, querida e suspirada…/…/Mãe dos prazeres, doce Liberdade!», o chamado «soneto ditado na agonia» («Já Bocage não sou!…») e o tremendo auto-retrato («Magro, de olhos azuis, carão moreno…»), mas, enquanto tais sonetos foram alvo de duas ou três opções, só mereceu uma aquele que mestre Olavo Bilac considerou um dos mais belos da língua portuguesa: «Se é doce, no recente, ameno Estio…». Continuaremos num próximo n.º

António Ruivo Mouzinho

(Associado n.º6294)



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